A ferida que fere

 

A ferida que fere

Português

Sete passos para a esquerda. Doze passos para a direita. Cuidado com o precipício! Pior do que esfolar-me todo é a tareia que levo em casa, quando chegar. A mãe detesta que eu venha para aqui brincar. Detesta que eu chegue sujo e ensanguentado. Como se fosse ela que me lavasse a roupa ou me curasse as feridas… Diz que eu vou morrer de tétano ou cair num buraco e ficar lá preso, a morrer de fome ou algo ainda pior (o que será pior que isto?). Já me bateu tantas vezes quantas as que soube que eu aqui estive mas continuo a vir. É o único sítio do mundo onde ninguém me chateia.

Odeio a escola. Odeio aquela gente estúpida que diz que eu cheiro mal e que sou pobre. Odeio a professora que me chama burro em frente dos parvalhões da minha turma. Odeio que eles se riam de mim. Odeio ser “o filho da prostituta”, “o futuro delinquente”, “o marginal com dois olhos e um cérebro diminuto”. No Conselho da Escola sou mais conhecido que o tremoço. A última vez em que lá estive levei o sermão habitual e fui suspenso três dias. Nem me dei ao trabalho de negar aquilo de que me acusavam: roubei dois pães e uma laranja, do cesto pousado na cantina da escola, sim senhor. Não pedi desculpa, nem peço! Estava cheio de fome… Tinha ido a casa na hora do almoço porque a mãe estava num dia bom e queria um “almoço de família”. Queria pedir desculpa das cenas da semana anterior, já não aparecia em casa há três dias. Durante esse tempo valeu-me o almoço da escola mas, naquele dia, em que ela me esperou perto do portão e me pediu para ir a casa almoçar, não apareceu. Não comi e não tinha mais nada para comer até ao dia seguinte. Não pedi desculpa, não fui capaz. Também não disse que a mãe tinha saído no domingo com um cliente e que tinha regressado naquela terça de manhã, como faz habitualmente. Ninguém sabe nada da nossa vida. Ninguém sabe que, para além de sair com clientes, a mãe leva-os lá para casa. Alguns são maus, batem-lhe e gritam com ela. E até me batem a mim, quando a tento defender.

Ninguém sabe que a mãe enfia uma agulha no braço que a deixa com os olhos revirados e quase morta, durante muito tempo. E, quando isso acontece, às vezes tenho de vir dormir para a rua para aqueles tipos manhosos não me deitarem a mão.

Ninguém sabe que ela não tem mais ninguém que cuide dela. Ninguém sabe que eu gosto dela, apesar de às vezes quase desejar que ela não acordasse mais. Ela não é feliz. Diz que só foi feliz quando eu nasci e que agora, que já tenho 10 anos, percebe que também vou crescer e a vou deixar, como todos os homens da vida dela. Não a quero deixar. Não posso abandoná-la mas não consigo parar de crescer…

Ninguém sabe que raramente há comida em casa. Ou água. Ou luz. Quando há água, tomo banho e lavo a minha roupa na banheira. Lavo o chão (sempre com vomitado da mãe em todo o lado e às vezes preservativos e seringas) e os lençóis. Quando há luz, estudo e faço os trabalhos para a escola.

Ninguém sabe que a mãe às vezes dança comigo pela sala. Traz pizza e coca-cola e rimos de coisas parvas e sem sentido. Nesses dias a mãe diz que tudo vai ser diferente, que não me quer perder, que eu tenho que me portar bem senão a Comissão leva-me e põe-me num sítio mil vezes pior do que a nossa casa. Nesses dias a mãe chora e pede desculpa por não ter dinheiro, por não saber cuidar de mim e da casa, por ser fraca. Nesses dias abraça-me e eu fico feliz e cheio de esperança. Os abraços da mãe são secos e sufocantes mas são os únicos que tenho.

Quando me irritam, bato. Quando me insultam, grito. Quando me humilham, choro por dentro e rio por fora. E isto acontece-me muito. Finjo-me de forte, faço de conta que nada me incomoda. Digo coisas estúpidas. No outro dia, o Zé canetas chamou-me porco. Nem pensei, abri a boca e saiu-me, com as letras todas, “a puta da tua mãe”. Claro, na aula, com aqueles parvalhões todos a rirem-se de mim e a professora, de boca escancarada, a olhar para mim como se tivesse visto o demónio. Gostava de lhe explicar que nem sei porque disse aquilo mas não sei o que fazem as outras mães, que mais haveria de lhe chamar? Não disse mais nada. Mandaram-me àquele médico horrível, que eu juro que cheirava pior que eu, e o iluminado que mal me ouviu, receitou-me um xarope milagroso. Até achei piada aquilo de início, era docinho e ficaram todos tão contentes por eu o tomar. Um simples xarope e estava tudo resolvido. Mas depois deixei de saber onde estava. Pensava e agia em alturas diferentes, não conseguia falar sem enrolar a língua. Durante as aulas, queria pedir socorro, dizer que não queria estar assim, que aquilo é que era mesmo a pior de todas as coisas. Queria dizer que na minha cabeça só via a mãe, deitada no chão, com os olhos revirados, e eu a abaná-la, durante horas, sem que ela se mexesse. E depois já não era a mãe, era eu, ali deitado, com os olhos revirados e com espuma na boca. Não queria estar assim. Não queria. Não quero… E agora, agora tenho muito medo. Antes tinha mais fome que medo. Agora é tudo igual, só que custa muito mais ir para a escola. Não quero bater em ninguém. Não quero chamar nomes a ninguém. Não quero mais aquele maldito xarope.

Está frio hoje e custa a dormir aqui na entrada do prédio. A mãe trouxe companhia e eu não tive tempo de lhe dizer que tenho febre e que me dói a garganta, antes dela me por na rua, já a enrolar no braço aquela coisa estranha que ela usa para depois enfiar a agulha. Se conseguir dormir gostava de sonhar que estou numa casa bonita, deitado numa cama fofa e com lençóis a cheirar a lavado, a beber um leitinho quente e que a mãe me conta uma história até eu adormecer.

Os meninos maus têm direito a sonhar coisas bonitas?

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