Chuva

 

Chuva

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Chovia lá fora. Podia ouvir as gotas grossas a baterem no vidro, como se pedissem para entrar, até escorregarem, num gesto conformado, em direcção ao parapeito da janela, dissolvendo-se como uma lágrima. Olhou para fora, apertando o casaco que acabara de vestir. A rua estava escura, mal iluminada pelo candeeiro, e deserta de gente. Estava escuro também do lado de dentro. Escuro e silêncio, apenas interrompido pelo tic tac do relógio de parede, que lhe dizia que o Tempo nunca se deixa agarrar.
A chuva lá fora lembrava-a do dia do seu casamento, em que também a água caía desalmada do céu abaixo. “Casamento molhado, casamento abençoado” dizia-lhe a mãe, acariciando o seu rosto ainda tão jovem. Abençoado não fora, talvez a chuva estivesse a prever as lágrimas que iria chorar depois...e aquelas paredes sabiam, sabiam de tudo o que ali vivera, até chegar àquele dia, aquele instante em que a sua vida ia mudar.
Apertou um pouco mais o casaco, num gesto inconsciente de aconchego; o aconchego que lhe faltara naqueles trinta anos de casamento, tantos quanto pode durar uma vida inteira. Olhou através do vidro, mas viu o seu próprio reflexo. Era bonita ainda. Nunca perdera a vontade de se arranjar, o seu cabelo era agora louro para não ser branco. Tocou o rosto. Bons cremes não aliviavam a dor de uma bofetada, mas preveniam as rugas mais acentuadas. Já bem lhe chegava ter a alma envelhecida, não era preciso que isso se espelhasse na cara. Por isso sorria tanto. Sorriu ali mesmo, naquele momento, ao pensar nisso, sem mesmo se aperceber. Era já um gesto automático, fruto de tantos anos a manter uma aparência de felicidade...
Sentou-se na escuridão da sala. Estranhamente não se sentia sozinha, cada objecto naquela sala parecia fazer-lhe uma companhia silenciosa, como se falasse com ela uma conversa muda de despedida. Todos lhe traziam uma memória. Aquela mesa! Quantos almoços e jantares proporcionou, em encontros semanais de amigos? Comida feita por ele, excelente cozinheiro amante dos temperos, sempre acompanhada dos melhores vinhos, e conversas melhores ainda. Ele era um ótimo anfitrião, atencioso e bem disposto, e não havia quem não desejasse ser convidado para um dos seus famosos convívios de fim de semana.
De repente sentiu saudades desses dias e noites de tertúlias e alegria, em que as gargalhadas soavam no ar e onde, de vez em quando, levava um beijo carinhoso e um olhar terno. Mas logo a saudade se dissipou ao recordar as refeições apenas em família, à mesma mesa, ora silenciosas, ora agitadas por uma discussão qualquer, que acabava em gritos e choro das crianças. Ocasionalmente voava um prato, porque ela não era tão boa cozinheira como ele. Levou a mão à perna, num reflexo: tinha a cicatriz de uma dessas iras, em que um estilhaço a fizera ir ao hospital levar pontos.
Voltou a sentir a dor, mais na alma que na pele...
Recostou-se e voltou a fechar os olhos. A chuva continuava a cair, mas ela não tinha mais lágrimas para deitar. Só queria ficar ali mais uns instantes, antes de se ir embora e não mais olhar para trás. Os filhos já eram independentes e tinham uma vida feliz, apesar das cicatrizes emocionais. Sentiu a familiar pontada de remorso no peito, mas não se ia martirizar mais porque, se o Tempo não esperava por ninguém, muito menos voltava para trás. Dentro das suas circunstâncias limitadas fizera o possível para os proteger. Também ela fora uma vítima, uma prisioneira enfeitiçada pelo seu carcereiro, uma crente das palavras que a faziam sentir-se culpada ainda não sabia bem do quê. E quando acreditamos piamente no que nos dizem, mesmo que sejam palavras para não nos lembrarmos do nosso valor, deixamos de ver com clareza. Lembrou-se das palavras doces também, dos pedidos de desculpa, dos presentes inesperados, das noites de amor e carinho, e da esperança renascida a cada vez que recebia migalhas de amor. Mas sabia, hoje, que não podia agarrar-se a essas memórias, porque elas eram as suas algemas. Por cada boa acção, eram cometidas duas de agressão, física ou psicológica. E eram essas que, com o sofrimento que traziam, a iriam libertar de vez.
Sabia que estava marcada emocionalmente para o resto da vida. Mas ainda podia viver. Ainda podia amar. Ia fugir enquanto não perderá a fé, a esperança, e o apetite pela vida. E não se ia deixar aprisionar pelo rancor. Ela perdoara vezes demais quando era também responsável pela sua própria felicidade, e esquecera-se disso. Apenas dera de si, e conformara-se com um nada de volta. E agora, naquele momento, ele dormia descansado na cama, seguro da sua eterna submissão. Mas não desta vez! Não ia sorrir e fingir que tudo estava bem. Não ia ter vergonha da sua fragilidade. E não ia ter medo do mundo lá fora sozinha.
Sentiu novo aperto no peito, mas desta vez de excitação, num doce pressentimento que lhe aquecia a alma. Tinha 50 anos e sede de viver. Não sabia o que a esperava, que dificuldades ia enfrentar;era como uma criança a dar os primeiros passos, sem saber bem que direcção seguir. Mas sabia que não queria mais o conforto daquela prisão dourada. E, desta vez, não tinha sido necessária uma chapada, um empurrão, um puxão de cabelos. Bastaram quatro palavras carregadas de escuridão, mas que lhe iluminaram o espírito com a certeza que merecia melhor. Três simples palavras cuspidas com azedume: Tu és Nada!
Olhou para baixo ao aproximarem-se as luzes de uns faróis: chegava o táxi. Ergueu-se, nervosa. Era agora ou nunca! Não ia levar nada consigo, tirando a roupa que tinha vestida. Não queria nada. Tudo o que tinha dentro daquela casa estava carregado com a energia da sua infelicidade: ia começar do zero. Ia amar-se a si mesma. Ia amar os outros. Ia sorrir de dentro para fora. Ia ser mais pobre, mas muito mais rica, porque a paz de espírito não tem preço. Ela merecia ser feliz, e não ia aceitar que alguém lhe dissesse o contrário.
Tirou do bolso um papel, e pousou-o cuidadosamente em cima da mesa, cujo pó estivera a limpar nesse mesmo dia. A seu lado pousou a aliança de casada, o símbolo da sua prisão.
Com um último olhar em volta, virou costas e saiu de casa, ao encontro do táxi e ao reencontro consigo mesma. 
Ele continuou a dormir no quarto. O relógio continuou a fazer tic-tac, porque o tempo não espera. Lá fora a chuva continuava a cair. E a brancura do papel destacava-se na dispendiosa mesa de mogno. Nele, estavam escritas apenas três palavras:
Eu sou Tudo.

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