Anjos e tigres

 

Anjos e tigres

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Anjos  e tigres

Neide Heliodória

 

Prestes a proferir uma Sentença importante, o Juiz no qual ele se tornou, moldado na pedra calcinada das palavras, torneado por inquietações antigas e pregressas, ele, tamborilava incessantemente o lápis na mesa. Sabia-se tomado por aquela história do Adolescente acautelado por um homicídio cometido às portas da puberdade.

O Douto magistrado era rígido como só pode ser quem já fora visitado por injustiça da ordem da incompreensão, daquilo que pode ser barbarizado. Muitos e muitos anos tinham se passado, no entanto diante de algumas demandas jurídicas ele era revisitado por lembranças daquele episódio e sentia o dissabor de ter acordado os tigres que habitavam aquela alma, mas que estavam adormecidos há um longo tempo.

Entre tantos processos aquele o fisgava de maneira sobressaltada. Um susto com gosto de morte aparecia no gosto biliático das manhãs que antecederiam aquela decisão. No histórico do processo, muito trabalho foi feito: encaminhamentos, internações, e um adolescente indiferente à Lei. Aqueles olhos do menino eram um misto de desafio e a busca desenfreada do amparo adiado por 16 anos. Abandonado pela família, vendido para o tráfico e seu “poder” ilusório, ardiloso.

Casualmente esse garoto se vê tomado insubordinadamente por uma oficina de cozinha e interessado em obter “descidas” ele banca o “bom menino” que o presídio espera. Pensava com deboche em sabotar uma das idas ao curso e fugir. No entanto, ele sem compreender não o fazia. Argumentava consigo próprio que faria mais uma apresentação gastronômica apenas para adoçar a equipe técnica que o acompanhava incessantemente. Não perderia oportunidade na próxima audiência de exibir como um troféu a cicatriz adquirida nas costas numa surra dada pelo pai com um pedaço de pau cravado de um prego que traria embaraços futuros e uma cicatriz na carne e na alma.

O doutor recapitulou a mostragem e escutou o tom heróico do menino e o chamado que passa pela dor filiar, pela dor de existir que ele conhecera bem... Outrora.

Insondáveis mistérios o ligavam àquele menino enquanto uma incessante lembrança quase sempre voltava, ainda que 20 anos tivessem se passado.

Releu os autos, consultou especialistas, porém já tinha tomado sua decisão. Descansou o lápis, partiu para o computador e proferiu a sentença. Libertaria aquele homem/menino, apostaria na cicatriz que também poderia ser disfarce de asas que brotariam num novo lugar, livrando-o de qualquer perigo, de qualquer recaída.

Libertou o rapaz, libertou a si mesmo! Uma lágrima quase verteu, contudo foi devolvida prá região lacrimal, pois gabinete não era lugar para aquilo. À noite porém, espreitava e adivinhava o pranto feito o remanso do rio, com gosto salgado de “Saída”. 

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