Daniel, vagabundo-filósofo

 

Daniel, vagabundo-filósofo

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Daniel, depois da manhã gasta a caminhar junto à praia, foi almoçar à tasca mais próxima. Não gostava de tascas, preferia o anonimato dos centros comerciais. Mas desta vez foi até à tasca do Sr. Eleutério. Um cubículo com 3 mesas e poucos metros quadrados. Comeu um caldo verde – delicioso como em poucos sítios – e uma sande de panado. Enquanto saboreava o minúsculo almoço, ia fazendo trocadilhos na cabeça, palavras cruzadas virtuais. O seu trocadilho preferido era brincar com o nome do pouco sorridente Sr. Eleutério: ”ele é o tédio”… Ao fim da tarde foi passear com o cão que não tinha. Ia ver o pôr-do-sol na praia da manhã, mas desviou-se para uma feira que tinha assentado arraiais perto do parque de estacionamento da praia. Pelo caminho ia fazendo festas aos cãezinhos, e uma ou outra vez assustava os pombos. Divertia-se a assustar pombos. Quando um deixava cair alguma pena na sua incipiente calvície, imaginava ser uma mensagem dos anjos, que não sabia interpretar. Nem a leitura diária dos signos o ajudavam a decifrar os mistérios do seu dia-a-dia. Seria ele de outro planeta? De algum ascendente desconhecido? Estes pensamentos levaram-no à entrada da garrida feira. A feira era o contrário de si. Cor, luzes, vozes feitas de alegria, muita gente de sorriso na cara, montanhas russas anãs, carrinhos de choque agitados, coisas a subir e a descer… Perdeu-se naqueles labirintos, ora para a direita, ora para a esquerda. Via jovens sorridentes, famílias de filhos felizes, velhos saudosos, quiosques de churros e cachorros oleosos… Quase no fim de um desses barulhentos corredores, estava uma banca de cores envelhecidas. Na parede, numa folha desgastada pelos anos e pelo tempo, escrita quase imperceptível, lá estava: “Banca dos beijos. APENAS 1€”. Daniel, o vagabundo-filósofo, olhou para a banca e ficou ali demorados minutos. Não via ninguém a entrar ou a sair. A banca não tinha uma luz a dizer “ocupada”. Ninguém quereria beijos? Ou teriam já todos recebido beijos suficientes? Ou, antes, haveria outra banca, no outro lado da cidade, com beijos mais baratos? Olhou para trás e sentou-se, discretamente, num banco a fingir ouvir música no telemóvel. As pessoas continuavam a passar e ignoravam aquele recanto que o tinha surpreendido a ele. Já ao anoitecer, e cansado de esperar, mas sem coragem de entrar na “banca dos beijos”, voltou a atravessar a feira em sentido inverso, com as cores, as famílias felizes, e os barulhos ao contrário, e saiu. Vagabundos pensamentos, misturados com a banca dos beijos, invadiram os seus sonhos nessa noite.

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