Já não há borboletas.

 

Já não há borboletas.

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Não me lembro da última borboleta que vi. Não me lembro de nenhuma se não daquelas desengraçadas, cinzentas, castanhas, que voam pela noite à procura de carne miúda. Já não vejo uma borboleta há muito tempo, a sugar com júbilo aquele pólen dos amores da minha avó. O jardim da minha avó não era o maior jardim da aldeia, não era o mais bonito, mas era o mais colorido de todos. Era o que tinha mais borboletas. E as borboletas eram de todas as cores, de todos os tamanhos, de todos os talhes. Com aquelas asas quebráveis, frágeis, que se desfaziam se lhes tocasse, bonitas. Com aquelas pernas compridas, finas, firmes. Com aquelas listas pretas, amarelas, vermelhas, azuis, lilases a sobreluzir. Com aquele corpo franzino, detalhado. As borboletas da minha avó atropelavam-se no céu baixo sobre os amores. Às vezes confundia um amor com uma borboleta. Pelas cores. Pelas asas que pareciam pétalas. Pelas pétalas que pareciam asas. Eu, com o chapéu do avô posto sob o sol canicular e com Os Bichos de Torga na mão esquerda, sou uma caçadora de borboletas capaz. Era pequena, queria o bonito todo para mim. As borboletas eram bonitas, queria-as para mim. Queria poder olhá-las sempre. Queria que fossem minhas. Então, tentei apresar uma e colocá-la no interior de um frasco de compota de abóbora vazio, mas ela não resistiu. Fiz pequenos furos com o lápis dos deveres sobre uma tampa de cartão improvisada, para que pudesse respirar, mas não resistiu. O frasco era pequeno e a borboleta bambeava confusa contra as paredes de vidro. Ainda desenraizei um amor violeta para lhe fazer companhia, mas morreram os dois. Não aguentaram um dia. E eu não aguentei um dia sem ter outra borboleta. Era uma caçadora capaz. Queria o bonito para mim. Achava que o bonito podia durar sempre se o guardasse num frasco de compota ou dentro do meu livro de cabeceira. Experimentei colecionar borboletas. Era uma colecionadora idónea. Queria uma de cada cor, uma de cada talhe e tamanho. Queria segurá-las num quadro, dispondo-as de forma a seduzirem o pólen dos amores amarelos da avó. Seria um quadro real. Uma espécie de fotografia do jardim materno. Uma fotografia de verdade, com elementos de verdade. Então, colhi três amores e colei-os numa folha de papel A4. Apanhei as quatro mais bonitas borboletas. As quatro mais vigorosas e tentadoras. Uma branca, uma zebra, uma amarela e uma laranja. Apresei-as pousadas sobre as flores contentes. Estavam distraídas com o banquete, e eu distraída com elas, com a sua pulcritude. Então, apertava, de cada vez que me aproximava das suas asas fechadas, o indicador contra o polegar da mão direita, como se de um gancho se tratasse. Era um movimento fleumático, cuidadoso, para que, em nenhum momento, a presa se me fugisse. E zás! Segurava-a, delicadamente. Sem premir demasiado as minhas hastes contra as suas, imediatamente abria Os Bichos numa página sortida e ali as dispunha para se espalmarem. Era um gesto selvático, frio, bárbaro, atroz - reflito. Mas sorria, por vê-las ali cativas, com um contentamento muito grande. Como se, a cada vítima que fazia, o meu poder fosse crescendo. Afinal, nenhum outro teria aquela beleza para si, como eu teria para mim. Podia, a partir daquele momento, olhar para ela sempre, ali composta naquele quadro de moldura lisa encarnada. É um quadro morto, agora, com pétalas e asas secas. Mas era bonito nos primeiros dias. E, nos primeiros dias, eu estava radiante. As borboletas do jardim da avó eram, finalmente, minhas. Como se tivesse um pedacinho da natureza só para mim. Podia olhá-lo todos os dias, nos dias de chuva, nos dias sem borboletas. Achava eu. Mas os dias foram passando, e o meu quadro foi escurecendo. As minhas quatro borboletas e os meus três amores iam perdendo o rubor. Como que se desfaziam em pó, a pouco e pouco. E eu assistia, comovida, a todo aquele processo de decomposição. Achava, até ali, que a beleza durava para sempre. Achava que ela era imutável e que, se a guardasse, ela se conservaria. Achava eu. Criança. Egoísta. Abobada. Parva. Tola. Achava eu. Até que percebi que a beleza não dura sempre. Muito menos se não a cuidamos. Eu não cuidei dela. Arquivei-a, só para poder olhá-la com olhos gulosos. Mas a beleza não dura apenas por olharmos para ela. A beleza persiste, percebo agora, se olharmos por ela. E olhar por ela é deixá-la viver. Não guardá-la em cárcere nenhum. Não fechá-la numa redoma de vidro pequena, tampouco amolgá-la entre as páginas de um livro de contos. É deixá-la viver, livre, voante. Já não vejo borboletas há muito tempo.
 

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