"Manhãs Intensas" - (excerto)

 

"Manhãs Intensas" - (excerto)

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"Manhãs Intensas" - (excerto)
Aquele sorriso, aquele pisar, aquela boca, aquelas mãos e aquele cabelo faziam dela a presença mais notada da esplanada. Dirigia-se ao balcão e com suavidade pedia um café, uma agua e sentava-se numa cadeira da mesa que ficava junto ao varandim. Tranquilamente tirava os óculos escuros da mala, limpava as lentes a preceito e com elegância colocava-os na face enquanto aguardava que a servissem. Era quase sempre assim que eu disfarçadamente a apreciava fingindo que lia o jornal, e à medida que folheava o matutino desordenadamente, os meus olhos não conseguiam fugir daquele "quadro", digno de uma tela para um artista qualquer. O momento era tão intenso que me fazia parar no tempo, e confesso que palavras simples não encontro para descrever aqueles instantes de emoção, como se de uma chama de fogo se tratasse. A cor do fogo depende da temperatura em que ele queima e, geralmente, cada parte da chama tem uma temperatura diferente. Era quente, muito quente e queimava bem, de tal forma, que a dor se tornava-se reflexa até me chegar ao coração...aos sentimentos...àqueles que absorvem a razão e o bloqueiam a consciência. Era isso mesmo...era a cor do fogo, e na verdade, era o resultado destas "cores" que aquela "tela" me transmitia...uma cor de luz emitida e formada por fótons e partículas muito pequenas que se comportavam como uma onda eletromagnética que me arrebatavam e prendiam com furor a estrutura do meu ser. Da mesma forma que o comprimento da chama tem uma coloração diferente, assim o meu corpo reagia (metaforicamente) ao tamanho e à intensidade dos meus sentimentos mais incautos. Que coisa esquisita...que fogo, que chama, que "ardor interior" aquela onda de fogo e magia me provocavam! Por sua vez a quantidade de energia que ela carregava, não deixava sequer espaço para fumar um cigarro...e a consonância do momento era tão estrita como a dum fio da navalha. Eram Azuis, vermelhas, laranjas, brancas...eram de todas as cores, mas essencialmente eram um mesclado do verdadeiro despertar duma paixão arrebatadora...Borboletas pairavam em torno do meu corpo todo, e a expressão corporal e binária dos movimentos da sua postura eram o "combustível" essencial para me levar ali todos os dias àquela esplanada. Dia após dia, sentia-me cada vez mais dependente de tomar café a meio da manhã e...não, não era nada disso, aliás, o café nem sequer me interessava para nada, presumo que era mais do jornal que me trazia as previsões diárias do meu signo que eu devorava ansiosamente para iludir a minha sorte num momento qualquer, mas...mas que conversa é esta!. ..qual jornal, mas qual café...eu tentava era ludibriar a minha ansiedade e a mim próprio só para voltar à magia daquele lugar e sentir-me presente de corpo e alma daquela esplanada. Era disso mesmo que eu precisava...eram desses grandes acontecimentos que nos fazem lembrar dos outros mais ínfimos e isolados que na amálgama dos dias, aquelas coisas que de tão integradas na pele estão, são incapazes de provocar, por si só, uma alteração no rumo de uma manhã. São desses que eu falo, dos inconscientes propósitos apesar de não querer mesmo acreditar, mas...não havia volta a dar. Era esse o meu "vicio"...o das manhãs que eu queria saciar, e só aquele "ecstasy" tinha o poder de me fazer bombear o sangue até ao limite. Valoriza-se o momento porque já se passou pela ausência, e amacia-se a voz porque se conhece o desespero, aumenta-se a doçura porque já se sabe o que é a dor! Foi assim que todos aprendemos a conhecer o fundo do coração – entre a presença e a ausência, entre a luz e as trevas, entre o amor e a dor. Foi assim que eu aprendi a resistir a tudo e a todos, mas principalmente e desde o princípio, a mim...mas a tentação de destruir essa dor a qualquer preço, acabei sempre rendido por uma paixão ou por um amor maior que de tão amargo se fez doce e de tão fundo se tornou a permanente inflamação do meu cérebro. Lembro-me, que num ápice eu chegava lá, e à medida que escolhia um lugar para estacionar, procurava desde logo o lugar exacto onde me queria sentar...pois, também se tratava duma corrida do meu tempo contra o sonar dos saltos altos dos sapatos que a mulher de todas as cores exibia e fazia estalar no seu paulatino andar. De maneira nenhuma eu queria perder todo o ritual desde a entrada até ao traçar das pernas depois de se sentar e colocar os óculos escuros na face. Cada época tem os seus trajes, as suas modas, o seu charme e até os seus simbolismos...mas entre aqui e o agora e aquilo pelo qual vale a pena estar presente fica sempre a impressão de que algo não está bem, e por isso, saber que o sucesso nasce do querer, da determinação e persistência para chegar a um objectivo, força-nos a atingir o alvo de quem busca e vence obstáculos (mínimos que sejam), será sempre admirável.
Ela entrou!...e a minha adrenalina disparava naquele momento, e os meus sentidos auditivos e visuais tomavam a dimensão ideal para eu ficar a par de toda a situação que se avizinhava. As calças justas, o top de malha em meia manga e o cinto que se deixava antever entre uma peça e outra, marcavam os evidentes traços dum corpo elegante, sensual , e provocador - atrevo-me inclusive dizer, que era uma "dor de cabeça" até para aqueles menos providos de testosterona...
O espaço era pequeno, e situava-se num aproveitamento duma varanda do ultimo andar dum centro comercial de 2 pisos. O balcão, esse, que dava serventia ao estabelecimento não tinha mais de dois metros de largura e ficava à direta mesmo junto à entrada da porta de vidro, que dava seguimento às oito mesas da esplanada...ao todo, tinha mais ou menos cerca de 50m2 em estrutura rectângular, o que tornava o lugar ainda mais acolhedor e desde logo propício aquelas observações de quem lhe apetece "meter" conversa com o parceiro da mesa do lado...era a simbiose perfeita para delimitar os sentidos com o eco de que tudo poderia acontecer. Olhei em frente e fitei aquela imagem brilhante que estava a entrar, mas atento e tal como os demais tentávamos admirar a beleza das cores que brotavam naquela malha de meia manga, e à medida que a minha curiosidade se aguçava, fingia que buscava um cigarro do bolso esquerdo do blusão (apenas para disfarçar), e atrapalhado, percebi num instante que afinal eu não estava ali para fumar, mas sim para sorrir e deliciar-me com aquele "quadro" que já me era familiar enquanto folheava um jornal ou um magazine qualquer. Que fragrância usaria aquela mulher, e que segredos escondia ela por detrás de tamanha magia? Atento à minha imaginação do momento e sem querer, deixei soltar um sorriso atrevido e cativante, baixei suavemente a cabeça e fingi colocar-me na atenção daquilo que estava a ler, mas afinal eu estava ali, não porque sim, mas sim porque o lugar tinha um íman com um magnetismo tal capaz de atrair as emoções de qualquer um...estava ali para "jogar". Com o mesmo pisar que lhe era peculiar, deslocou-se à mesa onde habitualmente se acomodava e o ritual começava à medida que o seu sorriso palpitante e com os olhos a brilhar, corria 360º graus a esplanada, até que num breve instante fixou-me com ligeireza para me fazer perceber que também ela estava atenta a todos os movimentos daquele pequeno espaço. Percebi finalmente que ela era real, e jogava de corpo inteiro, incluindo a alma em porte pago, e que não deixava que nada lhe escapasse, como se fossem esses os ingredientes para afinar almas alheias.
Os dados estavam lançados!...
José Mirador Santos
 

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