Até partires...

 

Até partires...

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Olho para ti. Os olhos quietos, serenos e incapazes de ver para além do mundo em que permaneces e que não é nem nunca foi o teu. Um mundo triste, onde nada se passa e onde nunca nada parece ter acontecido. Recordo com a alma embargada o dia em que te vi, nos teus cinco ou seis ou sete anos. Não sabes do que falo - é natural - tu não me conheces. Não conheces nada, nem ninguém. Nem locais. Nem datas. A noite e o dia são um só, intercalados pelos lençóis em que te deito à noite e te faço repousar. Recordo, dizia, a tua alegria; o sorriso e a galhofa quando jogavas com a bola que o teu pai te dera - porque só tivera uma menina e as meninas não podem jogar à bola: só brincar com bonecas. Mas ele queria brincar com a sua filha, a sua perdição, a sua vida. E deu-te aquela bola vermelha que tu incansavelmente tentavas acompanhar rua abaixo. Um chuto...dois e pimba! Bola a rebolar e a saltar rua abaixo. As vizinhas chateadas porque a roupa branca estava a secar ao Sol e se a bola lhe acertasse, lá teriam que repetir a barrela. Maldita mania da Maria-rapaz. Ó miúda! vai brincar às comidas...não vês que ainda me sujas a roupa? O teu pai ria-se ao longe, que eu bem o via e a tua mãe pedia desculpa e ralhava contigo. Eu era um ano mais velho e tinha vontade de ir lá para fora brincar contigo, mas a minha mãe não deixava. Eras filha do Doutor da aldeia e eu era apenas o filho do João Marceneiro. Gente assim diferente não se mistura, Pedro. Cada um no seu sítio. Mas eu bem via que tu olhavas quando te observava da janela. Ganhei coragem e acenei-te. Acenaste de volta e sorriste. O teu sorriso marcou toda a minha vida. Quis Deus, ou o Diabo, ou mesmo eu e tu que vinte anos depois casássemos. O filho do João Marceneiro com a filha do Dr. Carlos Costa. Foi festa rija na Aldeia - nessa altura tinhas regressado de Lisboa, depois da Faculdade e eu nem tinha acabado o Liceu -. Um quase analfabeto e uma doutora. Seguir as pisadas dos pais fora inevitável. Agora era eu o Marceneiro da aldeia. E a aldeia tinha não um, mas dois médicos. Era uma grande evolução! Quis também Deus, ou o Diabo, que o teu pai deixasse este mundo no ano seguinte.  Nunca te vira tão triste. O teu olhar estava naquele dia como está hoje. Longínquo. Vazio. Sem o sorriso - porque tu sorrias com a boca e com o brilho do olhar - para aquecer o mais gélido frio. Naquele dia morreu uma parte da tua vida. Só ganhaste nova alma um ano depois, quando nasceu o nosso Carlos. Um renascer do avô que não conhecera, mas que sempre estava presente, mais não fosse pela Casa em que habitávamos. As vizinhas cumprimentaram, beijaram, pegaram-no ao colo como se o "Carlitos" fosse o novo boneco da aldeia - e era, que ali os mais jovens éramos nós até então-. A tua mãe velhota ainda lhe fez as primeiras sopas e mudou e lavou muita fralda. Mas acabou por descansar de vez, deitada no solo ao lado do teu pai. Tinha o Carlos cinco anos. Decidimos mudar de rumo poucos dias depois e tu voltaste a Lisboa. Eu e o Carlos fomos pela primeira vez à Capital, onde tudo corria depressa, onde tudo era grande e diferente. Vivemos uma época feliz, dias bonitos, a ver o Carlos passar de criança a homem. Os estudos - puxou a ti e ao teu pai, felizmente -, as namoradas, o primeiro automóvel. Até ao dia em que casou e se mudou para o Porto. Ficámos os dois sós, na companhia um do outro. Sempre juntos, ainda muito apaixonados como se fosse o primeiro dia. Foi já perto dos teus setenta que tudo mudou. Primeiro um esquecimento, depois as teimosias e as certezas que eu sabia serem incertas. Uns meses bastaram. Agora olhas à tua volta e nem te lembras onde estás. À janela do nosso quarto, olhando para a rua e a ver o dia fazer-se noite, ali permaneces. A repetir infinitas vezes histórias de coisas que se passaram há um ror de anos, ou criadas por uma fantasia. A tua fantasia. Hoje não sabes quem eu sou, nem o que fomos um para o outro. Não sabes que tens um filho e que um dia, na aldeia que nos viu nascer - há tantos, tantos anos -, corrias alegre atrás de uma bola. Ao olhar para o teu sorriso sem sentido nem razão, vejo apenas a mulher que eu amei e amarei para todo o sempre. Até partires, meu bem. Até partires.

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