Até que a morte nos separou

 

Até que a morte nos separou

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Até que a morte nos separou

 

    Morreu uma mulher feliz. Sob o peso da sua idade, a pele já não lhe desenhava o belo rosto de outrora; antes o abafava com camadas de vida, sorrisos, tristezas e gargalhadas, mas era feliz

    Já não era a mulher deslumbrante que outrora fora, de fazer virar cabeças na rua, nos salões e restaurantes. Tivera pretendentes a rodos, cada qual mais apaixonado pela sua beleza, nenhum consciente dos seus sonhos e objectivos. Confidenciava-me, cabisbaixa, que era um tormento não ter quem a visse além da formosura.

    Teve muitas ofertas para tirar fotografias para catálogos de chapéus e produtos de beleza; algo que nunca a agradou. Aceitou algumas, por não nadar em dinheiro, até acabar o curso de direito.

    Trabalhou sempre em grandes escritórios de advocacia, como relações públicas. Nunca a levaram a sério como advogada, mas contratavam-na por sê-lo e por ter imagem atraente para os clientes. Depois de uns anos a saltar de escritório em escritório, acabou por desistir de tentar ser advogada de barra. A beleza acabou por ganhar como o seu maior trunfo.

    Durante anos gastou tempo e dinheiro em produtos e tratamentos para manter a beleza. Gastou nervos e anos a avaliar-se no espelho, temendo o dia em que o tempo lhe pesasse na formosura.

    Quando chegou o dia, pesado e vagaroso como uma nuvem negra que parecia não querer chover, ela considerou entregar-se a um cirurgião plástico que lhe puxasse o tempo para trás e lhe escondesse os anos entre os folhos que a pele começava a desenhar.

    Eu pedi-lhe que não o fizesse, que não estragasse o sorriso espontâneo que não deixara de ser lindo, apesar da cada vez maior falta de treino, e pelo qual sempre fora apaixonado. Lembro-me que ficou espantada a olhar para mim, como se estivesse indecisa entre beijar-me ou arrancar-me os olhos. Abraçou-me e deixou sair ondas e lágrimas, libertadas ao alívio da tensão acumulada durante anos e anos de luta contra a idade.

    Ela foi-se habituando a não fazer mais cabeças virar, não ter mais olhos em cima de si ao passar na rua e o sorriso por que me apaixonara na juventude voltou aos poucos a desenhar-se na sua cara. Sem dificuldade, a minha paixão voltou. Hoje sei que nunca se tinha ido embora, apenas dormia entre as dobras da vida. E ela aceitou-a, com alegria, e apaixonou-se por mim também. Passamos a rir juntos, a contar as rugas um ao outro, e a cada ruga nova desejamos mais uma, e mais uma, e mais um aniversário juntos. Amamo-nos. Fizemo-nos felizes. Até que a morte nos separou.

 

Gonçalo Taipa Teixeira

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