Era uma vez uma menina

 

Era uma vez uma menina

Português

Daniela nasceu no interior do país, no dia de Santo António. A mãe, devota de todos os santos – fazia pedidos de natureza variada – previsivelmente baptizou a criança de António, em homenagem ao santinho. Daniela nascera na prisão de um corpo errado, e toda a sua sensibilidade era feminina. Era como se fosse o resultado de uma receita mal doseada, sendo a testosterona um ingrediente quase em falta. E assim cresceu, com nome de rapaz, vestida de rapaz, e com brinquedos de rapaz, a sentir-se diferente e a ser encarada como tal. Certo dia, já adolescente e tomada de coragem, ousou o impensável, envergando um vestido de tecido tão suave quanto a sua essência. Olhou-se no espelho e sentiu-se confortável naquela imagem vagamente feminina que lhe era devolvida, mas o espelho reflectiu também o rosto horrorizado da mãe, que andou pela casa a benzer-se, perguntando a um Deus injusto porquê ela - logo ela que era tão devota! - tivera um filho assim?! O pai, depois de lhe tentar tirar o diabo do corpo com um cinto, tornou-se calado, ferindo-a com o seu silêncio repugnado. Assim, Daniela viveu refém de uma mentira, até ao dia em que decidiu partir, determinada a ser fiel a si própria. E foi com essa determinação que construiu os seu caminho, o caminho que a levaria a si mesma… Completava agora 40 anos, e observava o seu novo corpo, que a fizera renascer para a vida. Os seios eram cirurgicamente firmes, num desafio à gravidade, e relembrou o tempo em que não os tinha, o que não impedira que se vestisse como a mulher que se sentia; a ousadia valera-lhe uma valente tareia numa ruela de Lisboa, e ali percebera que o preconceito não é exclusivo dos sítios pequenos. Mas isso fora apenas mais um dos muitos obstáculos que tivera de enfrentar, e fez no seu intenso percurso amizades incondicionais, descobrindo assim um amor que nunca pensara viver…o amor por si mesma. Era agora Daniela, a mulher completa que lutara incansavelmente para se encontrar.

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