Eras velha e conversavas com os teus lábios.

 

Eras velha e conversavas com os teus lábios.

Português

Estavas sentada e, sobre a mesa pequena redonda, seguravas, com as mãos, o copo alto de vinho maduro. Estavas sozinha, ao canto. Ouvias Rod Stewart pelo microfone que alguém sacudia com a voz. Ouvias e fitavas o teu copo como se ele não estivesse ali. Olhavas para ele -parece que- à procura de respostas. Consegui, a alguns metros de ti e por entre a escuridão daquele bar com cortinas negras, perceber que mexias os teus lábios. Pensei que cantavas o refrão da “Sailing”. Pensei que gostasses de Rod Stewart e que aquela música mexia contigo. Pensei. Mas tu estavas quieta, com as mãos pousadas sobre a mesa. Com as pernas juntas pelos joelhos inertes. Com o pescoço rígido e os olhos fitos no copo de vidro. Mas os teus lábios, percebi com algum esforço, falavam contigo. Estavas sozinha, ao canto. Não tinhas ninguém. Não sei se querias não ter ninguém. Não sei se foste àquele bar cheio de gente para estar sozinha. Tinhas um chapéu cinzento. Um casaco comprido castanho. As mãos calçavam luvas pretas. Os teus tons eram escuros. O teu cabelo escuro era curto. Estavas quieta. Olhavas o teu copo. Os teus lábios mexiam, falavam contigo. Tentei ler a tua conversa. Tentei que os teus lábios denunciassem os teus pensamentos. Em que estarias a pensar? No frio? (Notei que as tuas mãos tremiam.) No homem que, como eu, te fitava curioso? (Notei que sabias que te olhava.) Na viagem que terias feito de comboio nessa tarde? (Notei que tinhas uma mala castanha junto de ti.) Na vida? (O teu olhar parecia longe de mais.) No teu amor? (Parecias sem coração.) Continuavas imóvel. E eu continuava a olhar para ti. Tentava ler-te. Ler-te os lábios. Eras velha. A tua cara estava enrugada e a pele das tuas mãos, que descobriste das luvas de veludo, ondulava sobre o osso. Os teus olhos fundos fechavam e abriam lentamente. Achei-te cansada. Estavas cansada? Em que estarias a pensar? Teimosa, levantei-me. Peguei, com subtileza, na minha chávena de chá e ocupei a mesa redonda a teu lado. Fi-lo com o pretexto de que, dali, ouviria melhor a música. Dali ouvir-te-ia melhor, na verdade. Continuei a seguir os teus lábios com os meus olhos ousados e tentei perceber o que sussurravam. A música estava muito alta. Era verdade que dali a ouvia melhor. Era verdade que dali também te ouvia melhor. Então ouvi-te. Dizias assim: "Tu consegues!". Dizias assim muitas vezes, como se fosse uma oração, não sei bem. "Tu consegues! Tu consegues! Tu consegues!" Mas tu consegues o quê?, perguntei-me como se te perguntasse a ti. Articulaste o cotovelo e conduziste a tua mão ao copo que tinhas em frente. Erguendo-o, levaste-o à boca. Calaste os teus lábios nervosos e bebeste um gole. Notei que o teu esófago contraiu. Pousaste o copo. Secaste os lábios com o lenço vermelho de seda que tinhas sobre o teu colo e continuaste. Os teus lábios continuaram a falar-te: "Tu consegues!”. Ergueste-te de repente, arrastando a cadeira de madeira velha para trás com barulho e eu ergui-me em susto, para tentar segurar o copo de vinho que deixavas cair. Elevando-me, percebo que calças a tua luva de veludo preta, abres a tua mala e seguras um revólver fino. Vi-o brilhar, com os meus olhos assustados. "Tu consegues! Anda lá, tu consegues!", repetias determinada. Sem saber o que fazer, com o teu copo entornado na minha mão, olhei-te em desespero. "O que vais fazer?" Tentei ler-te mais uma vez, mas os teus lábios estavam secos e contraídos. Agarraste o revólver com força e apontaste-o. Apontaste-o para mim. O meu coração acelerou, nesse momento. As minhas pernas ajoelharam-se. As minhas mãos enfraqueceram, deixando o teu copo cair, finalmente, ao chão. O teu copo partiu-se e, em uníssono, a tua arma disparou. O chão, consegui ver, estava molhado. Molhado de vinho. Molhado de sangue. Toquei nos vidros quebrados do teu copo com sangue, com vinho. Senti-os. Senti-os deitada sobre o chão frio. Lembro-me de apontares a arma para mim. Lembro-me de deixar cair o teu copo de vinho sobre o chão. Lembro-me de olhar para o chão e não me lembro de mais. Fecho os olhos, aperto as minhas mãos, e choro. Choro porque estou viva. Choro porque tu morreste. Choro porque não percebi que apontavas a arma para mim, apenas porque eu estava no teu caminho. Choro porque, ali, naquele bar escuro, achaste que não tinhas mais caminho. E atiraste contra ti, contra o teu peito. Caíste no chão, sobre os meus joelhos. Morreste. Morreste-me. Eras velha. Eras louca. Eras escura. Em que pensarias? "Tu consegues! Tu consegues! Tu consegues!".  Tu conseguiste. Morreste-te.

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