Festa na quinta

 

Festa na quinta

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Chegara o grande dia. O munhó (como os bichos o tratavam entre si), um gorducho bem disposto, tinha por hábito oferecer todos os anos aos habitantes da quinta, por altura de S. Miguel, um manjar que os regalava (assim o descrevia aos vizinhos), para agradecer a abundância das colheitas e alegrar um pouco a sua solidão. Além do alimento que distribuía com generosidade pelo enorme recinto vedado onde concentrava todos os animais nesse dia, juntava à água dos bebedouros umas gotas de aguardente, e depois ria-se como um perdido, com os pinotes, as marradas e os cacarejos desafinados com que eles o brindavam, como que conscientes do seu dever de o divertir.

O terreno era constituído por socalcos diversos, com vários abrigos de madeira para os animais pernoitarem, harmoniosamente distribuídos por toda a área. O terraço situado na cota mais baixa, delimitado a sul pela ribeira, tinha quase meio hectare, e era o local da festarola anual. O munhó tinha plantado ali alguns castanheiros, que projectavam uma bela sombra no Verão, antes de se encherem de castanhas a pingar, gordas e saborosas, para saborear no Outono.

Havia as espécies tradicionais a habitar naquele santuário rural: um asno, duas vacas leiteiras, algumas cabras (uma branquinha como a de Esmeralda), um bode, meia dúzia de ovelhas, um carneiro, um suíno com um porte de fazer inveja a um leão, uma dúzia de galinhas com dezenas de pintainhos a gravitar em volta delas e um belo galo de penas coloridas e crista altiva, que andava sempre à pega com um peru grandalhão que o irritava solenemente, porque conseguia fazer glu-glu-glu mais alto do que ele era capaz de cantar. E, claro, um São Bernardo bonacheirão como o dono, que se atravessava todas as noites à porta de entrada e fazia guarda apenas pela imponência da sua figura, porque nem o ribombar de um trovão era capaz de acordá-lo.

            O dia da festa era aguardado com ansiedade por todos os moradores da quinta, e os que nasciam entre uma festa e outra eram devidamente instruídos pelos mais velhos para a importância e solenidade do acontecimento. Todos tinham de dar o seu contributo para o bem-estar da comunidade. As galinhas punham ovos dourados e nutritivos e o rei da capoeira encarregava-se de garantir a abundância da prole; o asno ajudava nos transportes; as cabras e as ovelhas produziam leite para confeccionar os melhores queijos da região e encarregavam-se de manter a terra limpa, rapando todas as ervas indesejáveis; as vacas produziam leite em abundância e de qualidade, uma vez que o munhó não aplicava nenhum produto químico aos pastos; o porco cobria todas as porcas da região, o que rendia bom dinheiro ao dono; o peru servia de alarme quando era necessário acordar o munhó durante a noite e o São Bernardo garantia que, ao pôr-do-sol, toda a bicharada se recolhia, em segurança, aos seus abrigos.

            Nesse ano, nas ninhadas de pintos sempre presentes, havia um pequenino, franzino, que se sentia absolutamente desconsolado: olhava para aquele milho dourado, graúdo, suculento, que tinha sido espalhado em abundância para o festim das colheitas, e não se atrevia a deitar o bico a um único grão, porque temia asfixiar se tentasse engoli-lo. Limitava-se a esquadrinhar o solo à procura de vermes minúsculos, que podia fazer escorregar pela garganta para se alimentar. O desânimo tornava-se ainda maior ao observar uma franguinha de outra ninhada, robusta e airosa, que via engolir com prazer aqueles grãos de milho apetitosos que lhe eram dolorosamente proibidos. Olhava ora para o milho, ora para a franguinha, e só lhe ocorria um pensamento: ainda sou pinto, mas quando crescer, vou-te comer.

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