Gostas de estar morta

 

Gostas de estar morta

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Dava demasiada importância às coisas. A importância que algo tem é apenas aquela que lhe damos. "A nossa incapacidade de abstração material dá-me dores no cérebro", disse eu agarrado ao meu crânio. Matilde olhou para mim através das dioptrias que lhe capacitavam a vista de experienciar o mundo em alta definição, "Alguém lhe dê uma aspirina por favor.". O jovem, desastrado como sempre, procurou os comprimidos na sua mala. Notava-se nos movimentos desengonçados que ainda se estaria habituar a este corpo desproporcional. Estendeu-me o braço com os comprimidos entre os dedos. Afastei-o com a mão bruscamente fazendo o pequeno tubo de plástico voar pela sala, claramente irritado com a reação que tiveram perante o meu escrutínio. "Esse é o vosso problema.", proferia eu virando-me para Matilde de frente, "Pensam que todos os vossos problemas podem ser resolvidos com o simples ato de ignorar o assunto. Ninguém pode ter a mínima sensação de desconforto que de seguida somos caracterizados como doentes que necessitam de remédio. Têm medo de viver, logo medo de sentir, seria assim tão complicado arriscarem-se a ter sentimentos, a chorar, a doer? Não, claro que não, simplesmente preferem a via rápida. Seres dormentes incapazes de ultrapassar simples dificuldades da vida.". Matilde tinha levantado os olhos do seu livro durante poucos segundos do discurso, mas rapidamente voltou a deixá-los cair sobre as letras que a interessavam mais do que o meu pequeno manifesto à vida. Ao acabar de me ouvir dobrou-se para apanhar o frasco de comprimidos, abrindo-o e tomando de seguida dois sem necessitar de água para os engolir. "Agora estou eu com uma dor de cabeça.", disse em tom condescendente, ao que respondi, "Talvez seja porque gostas de estar morta.".

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