Jorge

O Jorge teve saudades do tempo em que tinha tempo
 

Jorge

Português
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O Jorge gostava de andar de comboio. Gostava muito. Gostava sempre. Gostava de se sentar à janela. Gostava de se sentar do lado do corredor. Gostava de se sentar de costas, de se sentar de frente. Gostava de ir em pé, no meio, agarrado ao corrimão. O Jorge gostava de tudo nos comboios. Gostava do cheiro das cadeiras de napa rasgadas. Do som das rodas de ferro nos carris. Do brilho prata das carruagens. O Jorge gostava de ter vivido na época dos combios a vapor. Atravessar a América num comboio pestes a ser assaltado por índios. Mas o Jorge não gostava muito de desertos.

O Jorge falava muito do café onde ia diariamente impregnar-se do fumo dos cigarros dos outros, do ocre acre exalado pelos seus poros. Nos demais cafés, o Jorge ouvia musica comercial em voz alta, enquanto esgueirava o olhar para as palavras cruzadas dos outros. O Jorge não gostava dos cafés com luz branca/flourescente, ele preferia os ambientes densos e tensos da neblina noturna de alguns.

Um dia, o Jorge esqueceu-se do tempo como quem esquece as luzes do carro ligadas. Acontece que a bateria do Jorge entrou em standby profundo. O Jorge caminhou tempo sem fim e não havia como encontrá-lo. Procurou no bolso da camisa, procurou nos bolsos das calças. Pensou: deixei escapar o tempo!  Imaginou o tempo perdido, esquecido numa qualquer paragem de autocarro. O Jorge teve saudades do tempo em que tinha tempo.

O Jorge telefonou-me às cinco da tarde. O Jorge falou durante uma eternidade de segundos e minutos. O Jorge morreu. Matou-se enquanto falava comigo e eu não dei por nada. Falava normalmente, sem desespero. Intercalava a conversa com longos periodos de silêncio. Um silêncio normal, um silêncio muito seu, muito Jorge. Nunca o interrompi no decorrer das suas confissões. Sempre soube entender que as suas pausas não eram espaços para as minhas palavras, eram somente silêncios em que refletia sobre o meu pensamento, certificando-se de que eu estava a acompanhá-lo. Não estranhei o demorado silêncio que antecipou o fim da nossa conversa, nem estranhei quando começou a falar de flores, quando me perguntou se gostava de dançar descalça, se tinha medo da noite...

Algumas vezes penso no Jorge... Imagino que o encontro casualmente entre uma e outra linha, entre uma e outra estação. Abrem-se as portas e ele ali está outra vez, todas as vezes, como era seu costume, como era costume. Olhar simples, cabelo farto e suavemente desalinhado. Bem disposto mas não necessariamente simpático. Qualquer coisa como caminhar sem luz num corredor conhecido.

 

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