A moeda da sorte

 

A moeda da sorte

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A minha história começou na casa da moeda de Lisboa. A verdade é que nada tenho que me destaque, sou uma moeda, de 1 escudo, escurecida pelo tempo e pelo uso e cansada de todas as viagens que fiz de bolso em bolso e de carteira em carteira. Mas hoje descanso, pois já não posso ser trocada por objectos ou comida. Descanso numa caixa pequenina na estante de uma menina que se fez mulher e que depois de me considerar a Sua moeda nunca mais me deixou entregue às mãos, bolsos, carteiras, maquinas registadoras, ...

Quando comecei a minha vida de trabalho era uma moeda feliz. É que moedas pequenas, apesar de alguns insultos, são as mais felizes, pois são as menos usadas e são as que normalmente vão parar aos mealheiros, sítios confortáveis e onde se fazem boas amizades. Mas o melhor de tudo foram as viagens pelo mundo. Moeda pequena fica sempre na carteira, mesmo quando se troca dinheiro para viajar, sendo levada a sítios incríveis. E quando se compra um gelado, espreita uma praia paradisíaca, ou então compra-se um bilhete e é possível ver a Torre Eiffel, em Paris.

Lembro-me do dia em que fui colocada debaixo da almofada de um menino. Havia lhe caído um dente e os pais deram lhe dinheiro por isso. O menino estava a juntar para uma bicicleta e colocou me no seu mealheiro até conseguir o dinheiro de que precisava. Antes que tivesse juntado tudo, a sua família mudou-se para Lourenço de Marques, em Moçambique.

Depois da minha estadia nesse mealheiro, passei para a mão de uma menina que vendeu a sua bicicleta. Fui trocada quase imediatamente por doçarias para alegrar o dia da menina. E caí numa caixa registadora, para, sem descanso, servir de troco a outro cliente. Galguei muitos donos e um dia voltei à mão da menina. Mas já se tinham passado alguns anos e desta vez a rapariga juntou-me a mais algumas moedas e notas que tinha de lado.

No ano de 1974, algo inesperado aconteceu e a rapariga partiu o mealheiro e juntou todas as notas e moedas numa pequena carteira. Guardou essa carteira fortemente, pois recordo me de estar desconfortavelmente apertada. Lembro me dos tiros, das corridas e do choro. Percebi que algo se passava. Era uma guerra e uma guerra não é esquecida mesmo pelas moedas. Se fosse possível ouvir as moedas mais antigas, imagino as histórias que teriam para contar.

Todos os meus companheiros foram trocados num espaço muito curto de tempo. Eu sobrevivi na mão da minha jovem proprietária. No tenso momento de comprar o bilhete para abandonar a cidade a que chamava sua e voltar a Portugal, eu fui a moeda que sobreviveu. Fui considerada a Moeda da Sorte e ainda hoje sei que quando me observa se recorda daquilo por que passou.

Para a menina, Portugal era um país atrasado, nem Fanta exista e era uma das suas bebidas preferidas. Para além disso, depois de um período fantástico da sua vida e da sua família, haviam perdido tudo sem piedade. Mas as memórias ficam e quando se guarda um objecto é sempre na esperança de não esquecer, sabemos que quando olhamos para determinada coisa ela nos vai lembrar de um momento bom que não queremos esquecer. Ser esse objecto é uma responsabilidade e uma honra, mesmo para uma velha moeda de 1 escudo.

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