O Espelho

 

O Espelho

Português

O meu quarto tem um espelho. E nesse espelho eu me olho sem me ver, todos os dias, em gestos automáticos de um dia-a-dia robotizado: creme de rosto, blush, rímel, um jeito no cabelo, e ali me olho, mas sem me ver. Queria um dia parar! E queria que ele me falasse, o espelho. Que me escrevesse um bilhete no seu corpo espelhado e me dissesse assim: “Vem. Atravessa-me. Sem medos. Do outro lado está um outro mundo, onde não te irás perder, mas sim encontrar-te. Vem. Atravessa-me. Aqui não existe linha temporal, as memórias de ontem não se desvaneceram nem perderam a magia. Olha, ali vem o teu pai. Há quanto tempo não o vês? Vinte anos...? Pois aqui não há tempo! Podes voltar a dizer um olá depois do adeus feito num aceno de mão que pensavas ter sido o último. Mas não... Agora podes voltar a ser menina. Podes novamente sentar-te nos joelhos paternos e enrolar-te no colo seguro do primeiro homem que amaste. Podes dançar novamente com pés pequeninos em cima de uns sapatos sempre impecavelmente engraxados...podes voltar a fechar os teus olhos castanhos, de encantos tamanhos, Tony de Matos pela voz de um pai lamechas. Ou acabarem aquele passeio ao castelo de São Jorge que o tempo, que aqui não há, não deu tempo de terminar. Podes falar-lhe do neto que não conheceu, e descobrires como é o brilho dos olhos de um pai que se torna avô. Podes viver o que ficou por cumprir entre os dois. Podes pedir desculpa. Podes perdoar; num mundo sem tempo não há espaço para angústias e saudades. Existe apenas um amor que não se deixa morrer, e toda a bagagem emocional é largada no pó de uma estrada sem medos. Depois, podes regressar de ti para ti mesma, e quando precisares voltas a este lado...mas entretanto levas nos teus olhos tudo aquilo que deixou de ser ausente.”

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