O Morto

 

O Morto

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O Morto

A água era uma mão poderosa. Engasgou-se e tentou gritar, porém, enorme, a  língua enrolava-se-lhe na boca e apenas engoliu mais água. Os pés, aflitos não encontravam o chão do rio, os braços impotentes esforçavam-se por agarrar o que não existia para agarrar, o pescoço a empurrar a cabeça para cima e os pulmões esvaziando o que lhe restava de ar e de vida.

- O Toino?!...

Puxaram-no com esforço, quando o corpo grande deixou de se debater, a favor da ajuda acabada de chegar. Inerte, olhos abertos a fitar o céu azul que se ia tornando escuridão, as  vozes a fugirem para longe, o coração a perder-se cada vez mais lento...

Restava agora a mortalha do silêncio que o envolvia.

- O Toino está morto?!

Despertou com o esforço de ouvir, e ouviu - “Ó Toino, olha o morto!” Voltou-lhe a  vida no pulsar e a consciência emergiu célere. Virou-se para o lado e vomitou toda  a água que tinha engolido. Deitou a morte para fora e encheu-se de novo da raiva antiga que o fazia correr atrás dos miúdos, quando estes o atormentavam com ferroadas de dor e de insolência - ´”Ó Toino, olha o morto!!!” e corriam, espavoridos, quando ele os tentava agarrar.

Levantou-se ainda cambaleante. Tinha a força dos músculos a seu favor que equilibrava a pequenez do raciocínio, lento e confuso.

“Deficiente, anormal, atrasado”. Nomes que o marcavam desde que tinha nascido e que sempre o acompanharam. Não se importava com eles, era essa a sua identidade, eram esses os sinónimos de si mesmo!

 António de baptismo, filho perdido na baralhação das ideias, nunca tinha feito mal algum, nos anos da infância e nos muitos de adulto que já contava. Até que começaram a dar-lhe o outro nome, aquele gritado em injúria quando passava nas ruas sem rumo, destino que traçava  no seu dia-a-dia de indigente. Esse nome não, que o deixava perdido, tresloucado!

Desespero ou acesso de loucura, o que lhe passou pela cabeça, pois não se lembra de ter agarrado o rapaz e de o ter empurrado contra o muro da escola.

Correu na boca de todos que o tinha espancado e que quase o estrangulara! Se calhar fora verdade, pois as unhadas no pescoço e as nódoas negras com que o miúdo ficou depois do sucedido, era a prova real sobre um problema que se lhe tornava difícil resolver.

E agora tinham medo dele. Queriam interná-lo, por ser perigoso!

- Ó Toino, olha o morto!

Molhado, os pés a escorregar dentro dos sapatos e a fugirem do círculo que se juntara para o ver morrer ali mesmo, afogado naquele rio que o enganara e lhe tirara a firmeza, por apenas saber dar meia dúzia de braçadas, meio cão, meio gente. Cão a nadar, cão escorraçado, cão faminto. Homem quando bastasse e mesmo assim muito pouco!

- Ó Toino, olha o morto!

Tinham dobrado os sinos e fazia frio naquele Inverno. A noite caíra cedo e cedo se recolheram todos. Não houve velório, pois o defunto não tinha família na terra, nem deixara amigos. Vivera solitário, abastado em conforto, servido por uma criada, velha e rabugenta como ele, que trocou o desconforto da capela mortuária, pelo aconchego do lume em casa do patrão. Apenas se sabia de uma irmã que vivia longe e que o notário já contactara para o funeral.

Tanto frio! Mexer-se ainda era pior, quieto não lhe chegava o sono!

A capela não ficava longe. Tinha uma janela que não fechava bem e que só ele sabia, nas  muitas noites em que lá se abrigara, a fugir da chuva e do enregelo que caía dentro do casebre.

Entrou, iluminado apenas pela lamparina de azeite, o nariz a saturar-se do odor enjoativo das flores depostas junto ao caixão.

O caixão!... Leito perfeito, aconchego dos mortos e dos vivos também! Pior o ocupante, chegara primeiro e repousava sereno. Bem vestido, agasalhado e ele, cão vadio sem eira nem beira, a pensar em dormir em qualquer lado mais quente, melhor do que a sua enxerga que lhe tolhia os membros doridos.

- Não dá para os dois, vá lá, toca a sair daí! – De dentro do pensamento as palavras saíam-lhe sempre entendíveis.

Pouco peso para a sua força. Colocou-o com jeito no chão de pedra.

- O frio já não te incomoda, mas a mim mata-me! - E esticou-se dentro daquela aconchegante cama, chamando o calor para si.

Bateram à porta e as pancadas ecoaram dentro de casa. Rostos desconhecidos e ao mesmo tempo a lembrarem-lhe alguém. “O patrão?” “A irmã!...” Nunca a conhecera, mas habituara-se a imaginá-la pela descrição que lhe fora feita. Mais nova 10 anos, partira antes de ela  entrar ao serviço naquela casa. Também ficara a saber que tinha casado, que tinha tido um filho, um sobrinho que ele nunca conhecera, das poucas conversas em que ousara perguntar - “O Senhor não tem Família?”. E agora ali estava a irmã, com mais duas pessoas que adivinhava serem os herdeiros do muito que o velho lhes deixara!

- Queremos vê-lo! Meu pobre e querido irmão! Morreste sem te poder abraçar uma última vez!  

Junto de si os dois homens colocavam as mãos nos seus ombros e suspiravam! - “Vá lá saber-se porquê! Nunca o tinham visto, nem vivo, nem morto! Cala-te boca, que morto está ele, só pensas em disparates!”

- Quero ver o meu rico irmão, quero vê-lo agora!

De nada serviu responder-lhe que a capela mortuária estava fechada, que o velório ficara adiado para o dia seguinte, dia do funeral, que já era tarde e mais valia esperar pela manhã. Sim, que sabia onde estava a chave, pois o sacristão a deixava sempre em sítio combinado. Suspiro fundo, o dela agora, pois não valia a pena teimar, estavam mesmo decididos!

Pararam  junto à capela. Debaixo de um vaso da entrada, a criada retirou a chave a tacto, a luz da rua era fraca e para além disso descera um nevoeiro que se adensara no avançar da noite. Rodou-a na fechadura...

 “Mãe!” - Era outra vez menino e a mãe embalava-o nos braços. Já mais crescido, deixava-o ao cuidado de uma vizinha quando ia trabalhar. Trazia-lhe por vezes um chocolate, que ele devorava na gula do prazer - “Coitadinho, não nasceu puro!” Repetia sempre a mesma frase, mas dela, ele só entendia o lamento. Levaram-na certo dia, parecia que estava a dormir! E também a deitaram numa cama como aquela, onde ele agora se sentia tão bem!

Empurrou a porta, havia qualquer saliência na laje do chão que causava sempre  resistência e necessária uma certa força! Abriu-se subitamente e bateu na parede com estrondo.

O barulho afastou-o da mãe que o olhava de dentro do caixão, sorrindo-lhe. Já não era menino, era um homem corpulento, com uma língua demasiado grande, que se enrolava na boca e não o deixava falar bem, o juízo retardado, a viver da caridade pública e da tolerância das pessoas da terra - “Ó Toino toma lá um cigarro!”

Não queria ser incomodado! Tinham-no acordado! Tinham-lhe roubado o sonho, tinham-lhe levado de novo a sua Mãe! Estava mesmo zangado e ia gritar, para que se fossem embora e o deixassem de novo dormir!

Entraram os quatro na capela, a irmã em pranto foi a primeira a  aproximar-se do féretro. A luz tremeu com o ar vindo de fora e ficou mais baixa. Foi então que o grito da mulher se soltou arrepiante, qual uivo lupino e os paralisou de medo e de espanto. Quase no escuro, o morto erguia-se de dentro do caixão, com a língua de fora, o cabelo hirsuto, os olhos a chisparem raiva.

O morto estava vivo, ou era a alma do defunto que se erguia para os assombrar?

Gritaram todos e atropelaram-se no embaraço da fuga. No meio do nada, apareceu gente, saída à força de suas casas, ao som do pânico, que os tornara irracionais.

- Ó Toino, olha o morto!

Sim, por ser cão dentro de água, cão vadio, cão que antes de ser escorraçado, se aproximava a pedir o afago de uma esmola - “Oh! Pá, dá-me um cigarro! Oh! Pá, paga-me uma cerveja!” - Cão de todos e de ninguém. Agora, cão raivoso, danado na ira de se sentir perseguido, acoitado naquela frase que o passara a atormentar, mesmo enquanto dormia.

- Ó Toino, olha o morto!

E até a sua Mãe nunca mais o tornara a visitar.

 

Noémia Maria Machado Lopes

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