Paralisação do Tempo

 

Paralisação do Tempo

Português

Na hora do jantar aconteceu a hora perfeita: comida na mesa, sem excessos e sem faltas, nem fome nem desperdício. Ainda entrava a luz do sol pela janela aberta, de moldura ampla para uma vista larga, sem prédios. A cadela sentada aos pés de um banco. O gato pedindo comida, como se de um cão se tratasse, a sua cauda acariciando de quando em vez os pés descalços por baixo da mesa. Três gerações à conversa, avó, mãe e filho. O som da televisão ligada nas noticias é somente um ruído de fundo, vago e difuso, suplantado pela conversa que rega a refeição. A avó conta histórias de um tempo longínquo, o tempo em que a pobreza era uma forma de vida, uma sardinha era um banquete, e a carne era coisa rara. Mas estas histórias falam da alegria resistente a tempos de racionamento. Falam das brincadeiras de crianças, de traquinices intemporais, e soltam-se as gargalhadas enquanto é vasculhado o baú das memórias. Então surge o momento, aquele momento único em que o tempo parece deixar de fazer tic tac, tic tac... E a filha olha a mãe, depois olha o filho, e sente a brisa morna que atravessa a cozinha, numa caricia que toca a pele e aconchega o aqui e o agora, aquela paralisação do tempo que sabe que vai guardar para sempre: o riso da mãe idosa, que recorda a infância, vestida na sua bata de rotina caseira, o brilho nos olhos, e o pão, que agora não é escasso, nas mãos ainda bonitas. E o jovem adolescente, para as duas sempre o menino, deliciado com o relato de tempos que não consegue conceber, mas que gostava de ter vivido nas brincadeiras tão mais livres e irreverentes que aquelas que conheceu na sua infância... E as palavras lentamente se distanciam, enquanto devora com os olhos aquele momento, aquele quadro mental que sabe que irá rever vezes sem conta na sua cabeça. O certo é que nada é eterno no mundo da matéria, mas este momento, o momento em que o tempo parou, viverá para sempre na sua memória, como a hora perfeita em que a felicidade se fez sentir, sem ser preciso nada mais que três pessoas juntas a uma mesa, uma brisa morna a passar, e dois animais a seus pés.

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