Pimenta na lingua

 

Pimenta na lingua

Português

O meu gato, Sr. Tobias Joaquim, teve hoje uma experiência fora do normal! Estive a fazer o recheio de uns pastéis de massa tenra, que baptizei de "indianos", e que é composto por cenoura, cebola, alho, meio pimento vermelho, e azeite. Após tudo triturado misturo um pouco de carne de porco picada, adicionando depois as minhas amadas especiarias: caril, açafrão das índias, e pimenta! Já cozinhado, salpica-se aquele tom alaranjado com coentros bem verdes. Reservei o recheio numa caixa, e sentei-me para jantar uma bela carne à bolonhesa, que cozinhara ao mesmo tempo. A janela da cozinha toda aberta deixava entrar uma brisa deliciosamente fresca, e o Tobias lá deu um salto ágil até ao parapeito. Chamei-o para dentro porque queria comer de coração descansado! Ele olhou para trás e só me obedeceu porque algo lhe chamou a atenção em cima da bancada. Saltou lá para cima, e aproximou-se pata ante pata de algo bastante apelativo. Segui a direcção do seu olhar curioso, e lá estava: um pouco de pimenta entornada por cima da bancada. Fiquei a assistir, convicta que, ao cheirar, ele se iria desinteressar. Mas não! Tobias Joaquim cheirou tudo muito bem cheiradinho, com algumas hesitações. Então, num rasgo de coragem, lambeu a pimenta! Numa fracção de segundo não se moveu...até dar um salto à la matrix, só lhe faltava o sobretudo! quase acertando no tecto, aterrando de imediato à porta da cozinha, a lamber-se desesperadamente, até que largou a fugir pelo corredor, numa aflição inglória porque, afinal, fugia dele mesmo, coitado. Tentei socorrê-lo, mas nos segundos seguintes só consegui rir-me. Lambeu-se até à hora do café, e ainda durante o queimar do cigarro. Agora dorme pacificamente encostado ao portátil onde escrevo, enrolado em si mesmo. O que lhe aconteceu também acontece a todos nós, em alguma altura da nossa vida, metaforicamente falando claro. Quantas vezes não "farejamos" uma situação, e sentimos que será inevitável ela tornar-se um belo sarilho? E, mesmo assim, seguimos em frente, levados por uma vontade irresistível de ver até onde nos leva o desconhecido? Acabando nós por ficar com uma sensação de arrependimento, de frustração, ou de tristeza e coração desfeito, dependendo do contexto? Mas, seja este qual for, o que acaba por se tornar mais difícil é o acto de fugirmos de nós mesmos, e dos sentimentos que ficaram cá dentro... O Tobias Joaquim bem correu, com o fogo todo na cauda, mas de nada lhe valeu...deixou passar o tempo, e lambeu-se pacientemente até que todo o ardor em si arrefeceu. Se for inteligente, nunca mais volta a lamber pimenta! Mas, pelo sim pelo não, e como por vezes caímos na mesma asneira uma segunda vez, vou estar mais atenta à bancada, nos dias em que estiver virada para uma culinária mais picante!

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