Raízes

 

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Cartas ao Pai de uma Órfã da Droga
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Como pudeste?

Podíamos ter sido algo de tão bom mas parece-me que fizeste tudo o que havia para fazer de errado. Não sei se é justo culpar-te, eu própria já cometi uma dose de erros nesta vida, mas não vou pedir desculpa se em algum momento o fizer.
O que é que um saco de pura alucinação te pode dar que a tua família não podia? Porque a tua escolha foi óbvia: perdeste-nos porque estavas demasiado agarrado aos teus próprios vícios. E tirares-me um pai não te era suficiente. Arrastas-te a mãe contigo como quem quer uma filha órfã da droga. E nem quando ela me quis afastar do problema inevitável que eras nos amas-te ao ponto de nos  deixar ir.  Fizeste sofrer a mulher que outrora te amara retirando-lhe a própria filha dos braços.
Como pudeste?
Talvez um dia te perdoe pelos pecados atrozes que cometeste dentro de quatro paredes e pela falta de afecto e de estabilidade de que eu, enquanto criança, tanto precisava.
Ao menos a tua cobardia de enfrentar consequências deixou-nos finalmente livres para viver uma vida melhor.
A mãe conheceu aquele a quem eu chamo pai, não pelos genes partilhados, mas pelo amor e educação que tu nunca soubeste dar quando tiveste a tua oportunidade; és-me um estranho, mas não o lamento, porque sei que estou melhor assim.

Saber tudo o que nos fizeste passar tantos anos depois não foi fácil, admito. Embora na altura tivesse visto na mãe alguém que, embora a determinado ponto tivesse cedido às suas fraquezas, tivesse em si algo de incrível por todos os sacrifícios sobre-humanos a que ela própria se submetera para cuidar de mim, não me via a mim mesma com igual admiração. Sabia que lhe lembrava algo que ela não queria relembrar: lembrava-a de ti.
Castigava-me por algo que nem tinha culpa, sei disso agora. Afastava todos com uma agressividade que era tão tipicamente tua. Era assaltada por questões como: “Porque é que não mudas-te? Não valho o sacrifício?”, que geraram em mim uma ridícula falta de auto confiança. A bacia conteve mais gotas de sangue do que de água, os cocktails de comprimidos eram a bebida favorita da casa e a linha do comboio atraio-me inexplicavelmente naquela noite em que as minhas costuras chegavam ao limite.
Agora percebo que não vale a pena. Tenho tantas coisas para ver, para experimentar, para viver, e não vou abdicar delas por ti.
Hoje, sei dar valor à minha verdadeira família e, mais importante, sei dar valor a mim mesma. Graças a ti, sei que sou mais resistente, embora ainda fisicamente enfraquecida pelos restos de vícios que ainda circulam em mim devido ao teu egoísmo e que não me permitem ser saudável em pleno. Hoje sei que sou capaz de qualquer coisa. Hoje não afasto as pessoas. Hoje, eu sei que não sou como tu.

Hoje, graças a mim, sou feliz.

Mas como é que pudeste?

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