A triste história do cigarro de folheiro

 

A triste história do cigarro de folheiro

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Hoje, a manhã parecia-lhe diferente. Embora acordado, não se conseguia libertar do pesadelo de carne crua que lhe tingia a memória. Parecia que os seus olhos não paravam de ver a imagem da carne, o seu olfacto detectava um intenso fedor de peça retalhada e um cheiro a morte de fresco. Pensou naquilo que os seus falecidos avós e pais – Que eles tenham o céu! – um dia haviam contado sobre o poder da premonição dos sonhos.

Num silêncio profundo de jaz sentou-se num miúdo banco de madeira, onde ela tantas vezes esteve sentada a brincar em criança e depois embalou as suas pequenas, e uma pesada e longa lágrima escorreu-lhe pela cara. E nesse instante, começou a preparar o seu cigarro de folheiro como se de acto de fuga emergente se tratasse. Pegou na sua trança de tabaco seca e quase enrolada como se de uma peça de artesanato se tratasse colocou numa folha de milho. Os seus pensamentos bastariam para acender a ponta, mas ele riscou o fósforo e nesse instante a mulher gritou um ‘ai’ doloroso e estridente como se a tivessem cortado ao meio, as pequenas tentavam sentir ainda a pele quente da mãe chorando baixinho e ele, o viúvo, fugiu. Partiu para as Bermudas, segundo dizem.

E o velho Samuel, que tinha sonhado com carne, acendeu o cigarro de folheiro. Ao primeiro trago fechou os olhos e durante esse fumo guardou todas as memórias de uma filha datadas desde o nascimento até à que nenhum pai quer saber – à de morte. Terminado o fumo, chamou as pequenas e disse-lhes num tom grave para decorarem o rosto da mãe antes de ser engolida pela terra do esquecimento.

E hoje, num outro hoje, a manhã continuou a parecer-lhe diferente. Preparou o seu cigarro de folheiro no seu banco de madeira e chamou as netas para ouvirem uma história de quando a mãe era criança, assim da altura delas assim quando ela era requinha como elas.

E no fim quando já todos riam, as pequenas viram os velhos e cansados braços negros do avô envolver o corpo tapado de negro da mulher e a dizer-lhe:

- Temos de dar esperança à lembrança do rosto, mulher…

E as pequenas:

- Conta outra, avô! 

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