Despir o medo

 

Despir o medo

Portuguese

Sento-me para escrever na minha cozinha, noite dentro, enquanto a minha cadela se agita no seu sono de bebé. Num dia em que assuntos importantes foram resolvidos, o que me trouxe um profundo alívio, entristece-me esta angústia que me acompanha e me impede de respirar fundo. Deixo que a visão da pequenina me traga a serenidade que ainda não fui capaz de sentir. Preciso de mim para mim e não consigo atinar com a minha pessoa. As coisas pendentes impedem-me de avançar. Sinto-me estagnada, numa bolha de irrealidade, fruto daquilo que está ao meu alcance fazer e não faço. Não basta cumprir os mínimos olímpicos para a sociedade, a entidade patronal, as finanças e outras “sagradas instituições” nos deixarem em paz, para sermos felizes. Não, não basta. Não quando permanece esta sensação de incompletude, de faltar algo em nós a que pertencemos (mais do alguma vez nos pertencerá), uma dor crónica na alma, invisível para os demais.

O que a vida traz porque traz - e traz a todos nós, aprendi com o tempo a aceitar, sem questionar. Contudo, as circunstâncias dramáticas que não posso escolher (as tais que a vida traz porque traz), as perdas, os lutos, as doenças, não as contesto. Choro-as, escrevo-as, grito-as, danço-as, mas não lhes pergunto porque chegaram ou porquê a mim. Preciso de toda a minha força para as enfrentar, para lhes sobreviver, para saber que existe um dia seguinte. Para acreditar. Mas o que é da minha responsabilidade e não faço, pesa-me como uma albarda. Estou nesse lugar agora. De profunda desilusão comigo própria pela minha incapacidade em dar o único passo que me separa da minha realização pessoal. E saber que isto já só depende de mim. Não é o fim de nenhuma linha mas o começo de uma linda caminhada que gostaria que fosse longa. Em vez disso, estou aqui, na antecâmara dos meus sonhos tornados realidade, com a mão na maçaneta, ad aeternum. As circunstâncias vão e vêm, outras agudizam-se e eu permaneço neste lugar de dor e frustração, incapaz de agir por mim. Sucumbo a uma angústia que me rouba o chão e a autoconfiança e, quanto mais o tempo passa, mais esta dor exige ser sentida. Hoje, pesa demasiado e não quero perder-me nela. Não posso. Por agora, fico aqui, a ver a pequenita dormir. Quero lembrar todas as coisas pelas quais sou grata e repetir, até acreditar, que um dia vou ser capaz de despir o medo e caminhar segura.

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