Miragem outonal

 

Miragem outonal

Portuguese

Percorrera um longo caminho para chegar casa, bebeu dúvidas e sorveu as lágrimas a rastejarem-lhe pelo rosto.Fez toda a viagem com parcos trocos no bolso, contava um par de minutos e sentava-se sobre a terra batida do trilho amortecido dos dias.
Caminhava sem estrada sob os pés, porque a estrada pesava-lhe em direcção ao longe;
e chorava, da perdição totalitária que procurava agarrar com as duas mãos que já não tinha. Não queria estar só, e, por isso, havia dentro dele espaço para uma incomensurável multidão. Gente rude, barulhenta, sanguinária e suja. Acusatória.
E outra gente, delicada, de fino trato, porém, descrente e sem espessura. Ficava confuso, mas não conseguia distinguir os bons e os maus. Como? Se, ele próprio, não se sabia benévolo ou maligno, novo ou antigo. Velho ou moribundo. Paragem obrigatória. O chapéu arredondava-lhe a face azulada tingida pelas veias proeminentes e havia um calor descendente a reclamar vida debaixo da pele fria, tolhida. Alma colhida pelo vento bravio.
Tinha pernas compridas, de serventia o bastante para chegar a casa, mas havia nele mais medo que mapa e, então, encolhia-se, fugia.
Nunca olhava para trás, não dava um passo que fosse para fazer o percurso inverso, mesmo quando as árvores lhe gritavam que não tinha sangue nem coragem (teima que és teimoso, atenta ao diálogo). Se decidia fugir, simplesmente parava. E esperava.
No limite da solidão, punha-se à conversa com quem ncontrava dentro, amigos provisórios,
companheiros de viagem que ele aprisionava à custa de uma imaginação que lhe sobrevivia. Era tudo mentira. Morte e vida. Absoluto reduzido a poalha. Se calhar, nem casa havia.
Por que partira? Para onde e ao encontro de quem? Não sei. Quase cobardia.
Ouço-te os trocos que trazes no bolso. Alívio. O silêncio não me engole; engulo eu já sem saliva, porque te vejo, escuto e pressinto, querendo que existas. Fará sentido?
Assombro. Serei eu gente que tens dentro? Deste-me tu vida de repente?
Vem, quero tanto conhecer-te. Daí onde estás, consegues ver-me? Ouves? Há música a tocar. Seremos banda sonora ou, tão somente, esta história? Tanto a mim me faz, desde que aqui estejas agora. Neste trilho preciso de terra batida, abatida sobre o teu regresso a casa. Num único e miserável instante estendo a corda do meu destino ao teu.
Não tarda, desmancha-se em nós a noite breu e talvez a soberba da manhã se esqueça de quem somos.
Que é feito da multidão? Do incomensurável? O tempo mede-me a coragem que julgas não ter; o que sabem as árvores de bravura (lá porque morrem de pé).
Tens-me aqui a mim, sem bússola, reduto de fé. Melhor do que tu não conheço o caminho, mas, até casa, asseguro-te, não seguirás mais sozinho.

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