DAS COISAS DO MUNDO E DA GENTE

 

DAS COISAS DO MUNDO E DA GENTE

Portuguese
Fotógrafo: 

8h30 na plataforma. Dirijo-me ao bar como de costume pró chá matinal que me acalma as dores da colite que decidiu voltar.

Acabo com os trocos que me restam. É sempre o mesmo todas as semanas. Esqueço-me sempre de que não têm multibanco ou então é uma artimanha inconsciente que utilizo pra meter conversa com o homem e queixar-me de que ele me deixa sempre a carteira vazia. Ele lá sorri, acena com a cabeça e eu agradeço-lhe silenciosamente.

Vejo uns sapatos rotos a aproximarem-se, um fato preto e uma capa que se senta ao meu lado. 23 anos talvez.., vindo da noite quem sabe, ou  de um qualquer lugar angustiado. Cara branca, esgazeada e inteligente. As pessoas não deviam de ter tanta densidade no rosto aos 23 anos. Apeteceu-me meter conversa com ele mas doía-me a cabeça. Tenho a mania de meter conversa com pessoas que não conheço.

No sábado, cruzei-me na sala da casa de uma amiga com uma senhora de 72 anos. Tinha sido empregada da família nos últimos 40 anos. O marido tinha falecido uns anos antes e ela não tinha voltado a casar. “Amei muito, não podia”.

Quando era miúda, irmã mais nova da primeira família do pai que a deixara pra se juntar à madrasta e ter mais seis filhos, foi criada pela avó que, sem dinheiro e sem senha de racionamento que o pai lhe tirava pra levar prós outros filhos, tinha que a levar a pedir pelas ruas, batendo às portas e rezando padre-nossos em troca de uma côdea. Tinha 7 anos. Aos 16, vinha da Maia até à Rua da Alegria, a pé, às 4h30 da manhã pra fazer pão. Calçava uns sapatos com sola de pneu pra durarem mais. Casou-se mas depois da fome que passou optou por não ter filhos. Não arriscou. “Vivi 14 anos numa casa sem casa de banho. Não criei os meus filhos mas criei os dos outros. A casa hoje está vazia. Acabou-se o rodopio de entrada e saída dos filhos, dos netos e dos amigos dos Senhores. ” - diz ela - “A solidão mata aos poucos, menina.”

Deve ser por isso que continuo a meter conversa com tudo o que mexe.

Já não estou na plataforma.

Todos dormem. Velhos e jovens. As pessoas estão extenuadas. Eu, como sempre, acordei às sete depois de seis horas de sono. 

2ªfeira. Saio da plataforma. Entro no mundo encantado do meu consultório, retorno às histórias de vida de gente que me procura para ser ajudada a caminhar. Eu ajudo gente a caminhar… e eles não sabem …mas aprendo a caminhar com eles.

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