Perfeição de Asas e Efélides

 

Perfeição de Asas e Efélides

Portuguese

   “É preciso ter asas para se saber voar.” Odeio esta frase, este cliché, esta vaga expressão de senso comum. As possibilidades são infinitas, mas o mundo é exacto; pensando que opta, a sua questionável escolha vai dar sempre ao mesmo ponto da mancha gráfica. Afinal, ninguém gosta de clichés. Dói-me afirmar que me insiro neste alvo, mas acolho Immanuel Kant na minha casa hipotética, deixando que as minhas razões e intenções me levem para fora do rebanho. Aleluia.

   Sinto que esta frase me ataca pessoalmente. É condescendente, quase presunçosa. Assume que quero voar, que quero ser fustigada pelo vento enquanto plano desajeitadamente por cima desta cidade, deste país. Não quero voar. Não quero roçar os céus com o meu cabelo flutuante, comprido. Não quero. É uma pena. Tivéssemos nós asas, estas seriam três vezes o comprimento do nosso corpo. A inconveniência destes centímetros torna-os obsoletos e inúteis, seguindo o propósito contraditório da sua existência.

   Nesta bela expressão popular, as asas e consequente voo são apenas uma metáfora para a criatividade e para chegar mais longe. Sim, admito, talvez esses adoráveis montes de penas fossem úteis nesse contexto. Talvez sejam esses seis metros de apêndice corporal metafórico que necessito quando rasgo o papel, quando o amachuco e atiro para o lado, porque a caneta se recusa a cooperar com o cérebro. É demasiado rápido, está mergulhado em multas, mas não dispensa o acelerador.

   Digo a mim própria, Não te preocupes, tens talento, a caneta há-de mudar de ideias. Quando isto acontece, o material de escrita torna-se mais amigável, mas o cérebro não alinha a sua rota de translação com a destes cometas insignificantes, que o não são. Não é a minha hora óptima; faltam as estrelas e o luar, mas continuo em frente à folha, abismada com o próprio abismo em que me vejo, tão claramente espelhado na alvura do papel. Tento fazer uns rabiscos, não resulta. São duas da manhã, vai dormir, é tarde.

   Sento-me na varanda, já são três da matina. Merda. Nem que Hermes me emprestasse as sandálias me safava. Comigo arrasto languidamente a folha e a caneta, espero inspiração divina das estrelas que longe implodem. Mas elas não estão lá, não as vejo, desespero, maldita Lisboa!, cidade metropolitana, não me deixa escrever. Talvez Camões o tenha feito de forma diferente, mas eu não encontro outra, olha, paciência; fico-me pela Lua, e a caneta que aguente.

   Não é suficiente. Pergunto-me porque é que o meu cérebro é tão pretensioso, e amaldiçoo-o sete vezes. É um número feio, o sete, mas a sorte nem sempre é bela. Olho para a luz do pequenino astro, por entre o nevoeiro que deixa à sua volta. Parece querer absorver a beleza dos seus subúrbios. Mas estou enganada, estou em Lisboa, não há beleza no céu, afinal os carros precisam de andar. Troposfera. O fumo ascende, mas pára. Estratosfera. Faz uma barreira entre mim e o Universo; que irónico é ter que entrar em casa, grande cubo de tijolos, para encontrar a clara expressão da Natureza, que afinal é um bonsai… Deixa lá, vamos ver televisão.

   Em Sesimbra, quando são duas da manhã (hey!) o céu parece areia. O granulado das estrelas distantes é nítido e cismático. Lá, ninguém quer saber da indústria; a praia é o que importa, e, assim, não há nada que me separe do Universo, para além de camadas intermináveis de ar; troposfera, estratosfera…

   Olhando para cima, para o pontilhado naquela grande abóbada, pergunto-me se estarei a olhar para as sardas de Deus. Será que pode ter sardas? Será que os seres perfeitos não podem querer mudar? Não podem sofrer? Não podem querer, não podem ser, não podem. Estão presos no paradigma contextual da sua condição transcendente. Mas se não há liberdade, de que serve ser perfeito?

   Desvio agora o olhar para Lisboa, o meu berço prostrado lá ao fundo, meramente representado por um conjunto de luzinhas piscantes e um Cristo Rei com os braços hiantes, como que dizendo, Isto é tudo meu, para que todas as estátuas do mundo oiçam o seu poder, para que todos os visitantes saibam a quem pertence aquele povo. Este povo.

   Directamente por cima desta comoção silenciosa, em vez do esperado prolongamento da derme do Senhor, nada encontro para além de nuvens. Grandes, densas, frias, castanhas. Formam um grande escudo, quase um toldo sobre a cidade, quiçá com a intenção de toldar a vista aos pedestres; olham para cima, julgam que vêem o céu, mas na realidade miram apenas o desprezável eclipse, que cai sobre os seus olhos ignorantes.

   Na cidade de onde da luz saí, vejo esta muralha de poluição luminosa, que me impede de escrever, de usar as estrelas, como posso ser uma poetisa inspirada, se não tenho as minhas musas a brilhar para mim, numa excitante e colorida apresentação burlesca.

   Longe, em Sesimbra, o céu sobre mim, açucarado, toma a forma das sardas de Deus, que exponencialmente desaparecem Lisboa adentro, lembrando a barba do Senhor, encrespadas nuvens. No entanto, se é o rosto do Pai que contemplo, onde estão os seus olhos? Certamente mais perto do Equador; dois tufões de movimento aleatório, com o intuito inocente e agressivo de ser. Talvez até seja essa a razão dos abundantes e questionáveis fenómenos meteorológicos verificados nessa região. Pouco importa por onde passa os olhos, afinal Deus não vê, Deus não pensa. Deus existe.

   Não quero chegar a lado nenhum. Tivesse eu asas, com a falta de jeito intrínseca que tenho para coordenar o movimento dos membros do meu corpo, certamente iria falhar na tarefa de voar. Talvez conseguisse, com muito cuidado, mas aos trambolhões, alcançar a vista do Pai. Sendo assim, não quero asas, no sentido metafórico ou literal, e quando pousar a caneta, esta será apenas mais uma daquelas folhas que amachuquei e atirei para o lado, quando o luar abandonado perfurava o pêlo facial do Senhor e eu necessitava furiosamente daquilo que o abandonou, daquelas efélides brilhantes que me trazem as palavras à ponta dos dedos. Duas horas depois, a caneta continua a não cooperar. Talvez mude para lápis de carvão. Mas sem borracha. Dá muito trabalho.

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