Meios, Fins

 

Meios, Fins

Portuguese

Corre, Brito. Ele vem aí! Na respiração entrecortada do meu amigo adivinhava-se-lhe o coração a bater acelerado, como o de um pequeno animal. Corri; na mão, molhada de suor e chuva, apertada como a garganta de um amante na hora do adeus, sentia os contornos duros do pequeno relógio de bolso.

Virámos por um beco escuro, afugentando para os telhados um grupo de gatos eriçados; mais alerta do que soldados em trincheiras, escondemo-nos à escuta. O som crescente de passos acelerados que tanto temíamos nunca chegou, e, para nosso irónico alívio, a serenidade da noite era agora cortada apenas pelos céus, que derramavam sobre o mundo toda a sua fúria líquida. Deixámo-nos cair e levar pelo torpor; respirámos livremente, indiferentes à tempestade, aos maus cheiros, um ao outro. Então, o meu companheiro deu de si. Brito – a voz subitamente décadas mais velha, irreconhecível mas segura: como se, guardada num qualquer fundo, sempre tivesse existido
–, acabou-se. Agora trabalho. Continua com estas merdas, se quiseres, mas não contes comigo.

Compreendi; anuí. Não expliquei.

Não voltei a ver o meu amigo.

Quando cheguei a casa, o sol rasgava timidamente o horizonte. O velho relógio rendera duzentos escudos: uma pequena fortuna. Tirei as moedas da bolsa de cabedal encardido e coloquei-as sobre a mesa da cozinha; depois, com um pesar ansioso no peito que era sempre novo, aproximei-me da cama onde jazia, inerte, o corpo inutilizado da mulher que fora a minha mãe. Lentamente, como se me pressentisse, abriu os olhos. Pela primeira vez, o ténue esboço de um sorriso encheu-me da esperança cruel do fim da solidão: reconhecia-me! Mãe, comecei, fora de mim, mãe, estás—mas calei-me, confuso: o olhar dela preocupava-se. Pai, já voltou?, ouvi, paralisado, aqueles lábios estranhos dizer. Ainda nem fiz o jantar! Deus, como o tempo corre…

Género: 
Top