O que não disse, Alice

 

O que não disse, Alice

Português

O dia boceja, aconchega-se. O sol atravessa a vidraça e aquece, pela última vez, a casa. Alice palmilha o passeio numa ânsia de a alcançar, de roubar dela um pouco de frescor. E, assim que transpõe a porta, deixa-se cair escorregando na parede fria. Sente o sangue pulsar na cabeça pendida sobre as pernas. Precisa de reagir. O dia ainda não terminou e há tanto para fazer. Há sempre tanto para fazer.

Levanta-se de um salto, pousa os sacos na mesinha de mogno da entrada e vai à procura de Artur. Não parece estar em casa. Sai para o pátio nas traseiras, dirigindo-se ao pequeno anexo de madeira ao fundo. A porta está aberta.

Alice apenas entrou ali uma vez, no primeiro dia em que visitou a casa. Aquela era a dependência de Artur, o seu ninho. E ela não lhe era suficientemente íntima para atravessar aquela linha que a soleira traçava.

Artur, era um antigo carpinteiro, agora reformado, de cabelos brancos, olhos cinzentos amendoados e barriga proeminente característica de quem foi (e ainda é) um bom garfo, um bom copo. Sofre, esporadicamente, de acessos nostálgicos que o levam a um isolamento irreflectido num outro mundo de memórias. A carapaça que escolheu para o proteger das rupturas que a realidade inflige copiosamente nas suas recordações toma a forma de uma divisão poeirenta e sombria por onde jorra, através das duas janelas de sacada a oeste, uma luz atrevida, intrometida. Despindo-a de todas as suas potenciais funções, vestiu-a de altas estantes e bancadas maciças onde repousam as imagens, os cheiros, as texturas de uma vida.

Por acordo mudo e mútuo, instantâneo e espontâneo, Alice e Artur respeitavam os espaços que haviam reservado para si próprios: o anexo, no caso de Artur, o sótão, no caso de Alice.

— Ah, Alice, estás aí. Desculpa a desarrumação. Como estás?

— Boa tarde Sr. Artur. Estou bem, obrigada, e o senhor? Tenho aqui a sua renda. Desculpe o atraso… Onde quer que a deixe?

— Deixa aí em cima dessa mesa, se me fazes o favor — mirou-a pelo canto do olho e permitiu-se rir um pouco. — Entra minha querida, não tenhas medo. Isto é só o refúgio de um velho. Entra…

— Não é isso… Só não me quero intrometer. Aqui tem.

Pousou o envelope, intimidada.

— Não te intrometes. Não sejas tonta. Não é que estivesse a fazer algo de interessante — tossiu um pouco. — Vim buscar uma tesoura para podar a laranjeira da frente e dei pela falta de algumas coisas. Estou apenas a ver se as encontro. Mas guardo tanta tralha, sabes? Torna-se até difícil encontrar um elefante aqui — comentou, dando uma gargalhada sonora.

— Quer que o ajude? — prontificou-se Alice.

— Agradeço mas não penso que seja preciso. Isto também me ajuda a matar o tempo — piscou-lhe o olho. — Provavelmente guardei-as em um outro sítio e não me recordo. Acontece… Dizem que a idade não perdoa.

— Sendo assim, com a sua licença, vou subir. Tenho que terminar uns quadros.

— Claro, claro, fazes bem.

— Até já.

Acenou um gesto de despedida e encaminhou-se para a porta.

— Contaste ao Valentim? — perguntou ele.

Alice, parou.

— Amanhã.

— Alice, Alice… — abanou a cabeça — Quanto mais adiares, pior irá ser.

— Eu sei. Amanhã falo com ele — condescendeu.

— Até já pequena, boa sorte.

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A rua cheira a mijo. A manhã cobre a noite dos bêbados embora não a consiga esconder. Lança-lhe apenas o seu manto. Mas o cheiro é pungente. A miséria pode se ter esquivado à reprovação dos transeuntes mas o seu odor não. A sujidade colou-se às paredes, o cheiro ao chão. O pavimento ecoa. Alguém quase que corre, calcando o chão violentamente. Ouve-se o bater de uma porta, a desonra concentrada naquele gesto.

— Bom dia, em que posso ajudá-lo?

— Bom dia, queria empenhar este relógio… Deixe-me só encontrá-lo.

As suas mãos suavam e todo o conteúdo da mala escorregava delas como manteiga —. Aqui o tem — disse aliviado, pousando-o em cima do balcão.

— Posso? — perguntou o dono da loja de penhores esticando a mão em direcção ao objecto.

— Pode e deve. Quanto acha que vale? Tenho alguma urgência em desfazer-me dele, sabe… Não sei precisar a sua idade, mas deve contar já com cento e poucos anos. É de um reconhecidíssimo relojoeiro inglês, Edward Prior, não sei se está familiarizado com. Pensei talvez em 1400 euros. Que lhe parece? – tentava que a voz trémula não o traísse.

O dono engoliu em seco.

— Bem, pelo que vejo é uma jóia rara. Isto parece-me prata aqui… Vê? De qualquer forma, precisava de um pouco mais de tempo para o avaliar.

— Como lhe disse, não tenho muito tempo. Queria empenhá-lo hoje ainda — reiterou, nervoso. O discurso rápido caminhando à frente do pensamento abria fissuras na sua credibilidade.

O dono, normalmente cauteloso, ostentava um misto de fascínio e desconfiança.

— Veremos o que posso fazer.

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As pedras da calçada não são obstáculos — Artur repetia para si mesmo. — Não podem ser. Os passos alongam-se como que forçando o tempo a esperar que o chão atinja os seus pés.

Chegado à rua principal, a consciência do esforço rende-se ao doce aroma da fruta fresca, do pão quente, das flores viçosas… É dia de feira. As pessoas atropelam-se mas Artur não tem pressa. E ali está ela! A praça! Não demasiado longe, não demasiado perto… E ali está ele! Valentim.

Não o chamou, a sua voz perder-se-ia no chocalhar das moedas, nos pregões dos vendedores, no bater dos sapatos. Limitou-se a remar contra a maré, a avançar devagar forçando a sua pulsação a cingir-se ao seu ritmo. Chegando perto de Valentim deixou-se ficar. Admirava o seu trabalho. Ele era bom. O carvão surgia desapercebido como uma extensão da sua mão. O seu olhar inquieto captava cada imperfeição exagerando-a, deformando-a, oferecendo-a de bandeja às luzes da ribalta. A petulância que lhe emanava dos poros não lhe retirava mérito. As suas caricaturas ensinavam às pessoas como rir. E faziam rir. Isso era importante.

Valentim acabava um desses deturpados retratos a preto e branco esbatendo o desenho onde, dos puros traços, nasciam as protuberâncias, as cicatrizes, os buracos, os excessos e as faltas. Quando acabou, Artur dirigiu-se-lhe:

— Olá Valentim — interpelou-o educadamente. — Interrompo?

— Olá, olá. Não interrompe nada. Que o traz por cá? A Alice entregou-lhe o dinheiro da renda, certo?

— Sim, sim, não se preocupe com isso. Vim porque… Bom, queria fazer-lhe uma pergunta — apalpava terreno.

— Diga.

— Não sei se a Alice comentou consigo, mas no outro dia dei por falta de algumas coisas no meu anexo. A maioria de reduzida importância, confesso. No entanto, dei por falta de um relógio de bolso, muito antigo, um presente do meu avô quando atingi a maioridade. Por acaso não o viu, não?

— Não. Porque haveria de ter visto?

— Não sei, não se ofenda. Foi apenas uma pergunta — disse num tom defensivo.

— Perdeu-o, problema seu. Sinceramente, não sei onde quer chegar com essa conversa — empinou o nariz.

— Compreenda, exceptuando duas ou três fotografias, aquele relógio era a única coisa que me restava do meu avô. Apenas quero saber se o viu. Às vezes, sem querer, pode tê-lo colocado no seu estojo, arrecadado numa gaveta qualquer… Estou apenas a especular — balbuciou.

Sabia que especular não o levava a lado nenhum, mas a necessidade de certezas, de manter vivas as pessoas que outrora amara levara a melhor. Precisava de as preservar. Não era da sua índole ser desconfiado, contudo, também não fazia parte da sua história de vida as ausências. Os avós morreram velhos, os pais mais velhos ainda, vivera sempre no mesmo sítio rodeado das pessoas de sempre. Quando as saudades começaram a despontar, arrebataram-no. Era como se uma chuva miudinha de chumbo lhe caísse sobre os ombros. Pesada, adensando-se com o tempo, com as ilusões da memória. Nestes últimos dias esse desconsolo tornara-se um vendaval indomável que o golpeava e feria. Não era sua intenção ser indecoroso, nem parecer que o era tão pouco. Mas o não-saber… O não-saber mastigava-lhe o discernimento.

— Isso sei eu que está a especular. Não o roubei, se foi isso que lhe passou pela cabeça — elevou a voz, indignado. — Guarde as suas suspeitas para si e deixe-me trabalhar. Vá beber um chazinho de camomila, vá. Dizem que ajuda a acalmar os nervos.

Posto isto, Valentim dirigiu-se a uma senhora com o maior dos sorrisos e indicou-lhe o banco.

— Rapaz rude – murmurou entre dentes. — Rude e insolente.

Artur deu meia volta e iniciou a caminhada de volta a casa. Todo ele era desgosto. Desgosto e raiva.

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Hoje não lhe apetecia pintar. Pensamentos a mais fluíam para que a cessação do movimento do pincel não fosse inevitável. Por conseguinte, ocupou-se a preparar as tintas: o laranja de colorau, o amarelo de açafrão. O perfume e a vitalidade das cores costumavam acordá-la, assim como o cheiro do café quente. Misturava os pigmentos na água, e a água na cola e, suavemente, a mistura se entranhava nos dedos, na palma das mãos, tingindo a sua roupa e, por fim, a tela.

Começou por mosquear o quadro. Flores quentes de Outono iam brotando do algodão. Frutos maduros bicados dos pardais iam caindo no chão, em relevo. Desenhava tijolos, paredes arruinadas e lebres. Desenhava lebres, pequenas, atentas, assustadas e retraídas lebres. Uma casa engolida pelo espaço permitido ao esquecimento.

Estava a aquecer um pouco a tinta para a engrossar quando Valentim chegou. Trazia o jantar. Noodles! Ela adorava noodles. Valentim puxou-a para si e deu-lhe um beijo na testa.

— Bons olhos a vejam, minha princesa — sussurrou-lhe ao ouvido.

Alice aninhou a cabeça no seu peito e abraçou-o, abraçou-o com força como se quisesse sugar todo o amor de uma vida. Ele enrolou uma mecha do seu cabelo no dedo

— És linda.

— Senta-te aqui comigo… Conta-me como foi o teu dia.

Pegando-lhe na mão, guiou-o até ao sofá onde caíram os dois, um em cima do outro.

— Correu bem. Sendo hoje dia de feira, a praça estava cheia. Devo ter feito mais de uma dezena de caricaturas. Algumas bem giras. Um dia destes pintarei alguém importante e aí… Aí vais ver como, em menos de três tempos, me torno conhecido. Irrealista, não? — corou.

— Um pouco. Mas quem sabe? Tens tudo para que isso aconteça.

— É difícil, porém não há razão para que assim não seja, certo? — um olhar sonhador o possuiu.

— Certo.

Alice beijou-lhe primeiro a orelha, depois o pescoço enquanto os seus dedos se escondiam dentro daquela camisa suada, leve, procurando a pele, procurando o calor, a graça de um corpo que se lhe entregava assim, a si, de fácil modo, sem perguntas.

— Quase me esquecia. Sabes quem veio falar comigo?

— Quem?

— O Sr. Artur.

— O Sr. Artur? Porquê?

— Veio insinuar que lhe tinha roubado um relógio qualquer do avô. Achas normal?

— O Sr. Artur? Nem parece coisa dele…

— Eu disse-te que aquele velho jarreta ia dar problemas. São sempre muito simpáticos ao início e depois… Só sabem lamentar-se da vida, fazer-se de vítimas, é o que é. E, depois, são sempre todos muito prestáveis, muito generosos. Tretas! Avarentos é o que eles são, gananciosos.

— Valentim, não acredito que o Sr. Artur seja assim como o estás a pintar, agarrado ao dinheiro. É sim agarrado aos seus bibelôs, às suas fotografias… Ele provavelmente só queria saber se sabias do relógio…

— Defendes-o? — levantou-se indignado. — Só não perguntou se o tinha roubado porque ganhou, a tempo, vergonha na cara. Achas que não sei como funciona gente da laia dele? Acreditam que a idade é um posto e que, ela mesma, justifica todo o tipo de regalias de que se consigam lembrar. São mais porque viveram mais. Que lógica é esta? Nunca roubei nada a ninguém e não admito que um velho senil ponha a minha integridade em causa.

— Não achas que estás a ser demasiado duro? Já chega, não?

— Alice, pensa! Achas que ele nos arrendou o quarto e este teu lindo estúdio porque se sente sozinho nesta casa? Ninguém gosta de partilhar a casa com dois estranhos. Ele precisa de dinheiro, é o que é!

— Ninguém disse que não…

— Ele precisa de dinheiro e deu-se conta que a mesada que lhe damos não chega. Quanto queres apostar em como daqui a um dia ou dois ele te vem pedir o dinheiro do relógio desaparecido, em como ele vai bater a todas as portas jurando a pés juntos que nós andámos a mexer no que não é nosso?

— Não acredito nisso, Valentim. Mas compreendo o que dizes… Não vamos discutir. Vamos esperar que ele não traga o assunto à baila outra vez. Pode ser?

— Tu és ingénua! Achas, sinceramente, que ele não vai trazer o assunto à baila outra vez?

— Pode ser? Podemos dar por findada a discussão?

Valentim rendido limpou um pouco a mesa do estúdio e dispôs a comida.

— Sim. Vamos comer.

— Obrigada. Sabes que te amo, certo?

Ele anuiu e sorriu. Ela era mesmo bonita. Nunca pensou namorar uma ruivinha de sardas com olhos cor-de-céu. E no entanto… Ela era ingénua, demasiado para o seu próprio bem. Porque é que ela tinha de ser tão ingénua?

— Fui convidada para expor os meus trabalhos numa galeria este fim-de-semana.

Valentim levantou os olhos, incrédulo. Pousou os talheres.

— Quando é que isso aconteceu?

— Há um mês atrás…

— E porque é que só me contaste agora?

Alice encolheu-se embaraçada.

— Não sabia como te dizer. Não queria que ficasses chateado comigo. Não fui à procura disto, simplesmente aconteceu…

—Aconteceu? Aconteceu? Pronto. Aconteceu. Porque eu desenho há anos e nunca me aconteceu nada de tão grande assim, e a ti aconteceu, apenas aconteceu.

— Desculpa-me…

— Desculpo-te? — o sarcasmo transbordava. — Porque haverias de pedir desculpa? Não estás feliz? Era o que tu querias, não era? E no meio dessa felicidade toda esqueceste-te de mim. Deste-te conta que não sou suficiente para ti não foi? Diz lá, Alice, diz!

— Não foi nada disso, Valentim! Só não sabia como te dizer. Só isso. Claro que fiquei contente, muito, mas nunca imaginei que isto acontecesse assim. Sempre pensei que nós íamos dar o nosso trabalho a conhecer juntos. Juntos! Não queria que ficasses magoado. Desculpa-me.

E por entre lágrimas e frustração contida, fez-se silêncio.

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— Perdoa-me Alice. És a mulher da minha vida.

Embalou-a nos seus braços.

Ela chorou.

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O telefone toca e Artur acorda precipitadamente. Ainda meio confuso descobre-se na poltrona com uma telenovela qualquer passando na televisão. O telefone toca outra vez. Artur levanta-se morosamente e encaminha-se até ele.

— Estou, quem fala?

— Estou, pai?

— Meu filho! Como estás?

— Está tudo bem pai. E consigo?

— Vai-se andando. Como está a correr o trabalho?

— Tudo sobre rodas. Olhe, posso visitá-lo na próxima semana? Está em casa?

— Onde mais haveria de estar? Em que dia pensas vir?

— Quarta ou quinta.

— Quando quiseres.

— Então combinamos quarta e, se der, repetimos a dose quinta. Às 13h está bom para si?

— Qualquer hora serve. Fico muito contente que te lembres do teu velho.

— Oh, pai, lembro-me sempre de si.

— Sim, pois.

— Levo sobremesa!

— Já sabes que não é preciso.

— Sim, pois — imitou-o. — Quarta às 13h.

— Quarta às 13h. Até lá. Abraço.

— Fique bem. Abraço.

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Alice vestia um macacão verde alface, elegante, juvenil. A maquilhagem que nunca usava surgia-lhe como um bicho de sete cabeças, que era imperativo domar. O cabelo liso entrara em guerra com o secador enquanto os sapatos esperavam pacientemente o roçar de uns pés previamente cuidados. Valentim já estava arranjado. Um fato azul-escuro, uma camisa branca e uma gravata verde cobriam-lhe o corpo.

— Não vou.

— Onde? — perguntou Alice.

— À exposição.

O ambiente ficou tenso, o ar irrespirável. Alice sentou-se na cama, atónita, sem palavras…

— Não leves a peito. Não consigo.

E Valentim saiu, assim, sem mais nem menos, sem explicações, fechando a porta do quarto atrás de si. Pela cara de Alice rolaram gordas lágrimas. Um olhar de vidro fixara-se na sua face. Não sabe quanto tempo ficou assim. Pouco, talvez… Um pouco que lhe pareceu uma eternidade. Precisava de ar. Levantou-se e, quando ia a sair do quarto, esbarrou com Artur.

— Alice! Que se passa? Pensei que já tivesses saído…

— O Valentim não vai.

Com um gesto Artur chamou-a para junto de si. Deu-lhe um abraço e indicou-lhe uma mesa. Pediu-lhe para retirar da segunda gaveta dois cigarrinhos: um para ele e um para ela. Alice disse que não queria e Artur insistiu.

— Nem sempre, nem nunca.

Artur foi buscar a caixa de fósforos à cozinha e, de seguida, pediu que o acompanhasse até lá fora. Debaixo da laranjeira havia um banquinho de pedra onde se sentaram os dois sem cerimónias. Artur acendeu o seu cigarro e depois o de Alice.

— O Valentim volta. A questão que se coloca é: Queres que volte?

Fez-se silêncio. O céu estava claro, salpicado de estrelas. O fumo subia e abraçava-as para depois as deixar a sós. Quando Artur puxou do último bafo, já as lágrimas de Alice tinham secado e, aí, ela levantou-se, ajeitou o macacão e…

— Tenho de ir.

Artur assentiu e, no meio de um sorriso:

— Já estás atrasada.

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Mal Alice chegou à galeria, deparou-se com uma sala já relativamente cheia, composta. Não esperava tanta gente. Começou por cumprimentar algumas pessoas conhecidas, conhecer outras que nunca vira antes mas que lhe diziam ser contactos importantes. Fez um breve discurso e um brinde. Apesar de todos os sorrisos trocados sentia que o seu espírito ainda não estava em paz. A pessoa que sempre estivera ao seu lado não estava ali. E porquê? Não fazia sentido. Sentia que destilava hipocrisia enquanto dançava entre convidados. E, enquanto dançava, bateu contra um destes.

— Desculpe, meu Deus, desculpe. Foi sem intenção.

— Não faz mal — disse ajeitando o casaco.

— Se lhe puder ser útil em alguma coisa, diga. E mais uma vez, as minhas mais sinceras desculpas.

— Se calhar até pode. Hoje fui arrastado até aqui por um cliente. E, querendo tirar proveito da situação, pensei comprar um quadro para uma pessoa que me é muito querida. Ele adora o trabalho em madeira, os aromas da fazenda… Com certeza deve perceber mais disto do que eu. Apesar de trabalhar com imagem e do meu pai ter sido, tempos idos, curador, considero-me leigo em arte.

— Que faz? Se não é indiscrição.

— Sou criativo. Tenho uma pequena empresa de publicidade. É isso, faço publicidade.

— Nunca tinha conhecido um criativo. Prazer. Deve ter muito trabalho.

— Prazer. Bom, se não conseguir agarrar este cliente, tenho de abrir falência. É difícil lutar contra as grandes empresas… Vamos ver, vai tudo correr bem, eu sei. De qualquer das formas, estou a fugir do assunto. Preciso de escolher uma prenda para o meu velho. Não tenho sido correcto com ele e juntar isso a uma preocupação desnecessária para a sua saúde como a situação financeira do filho… – brincou — Quero dar-lhe algo bonito. Ele merece algo bonito. Levo-lhe sempre uma prenda quando o visito e, desta vez, não vai ser diferente. Nem que beba chá ao almoço!

Alice deu uma gargalhada sonora.

— O senhor gosta de falar já vi. E brincar com coisas sérias.

— Os seus olhos hipnotizaram-me. Eu não costumo ser assim.

— Alice — baixou os olhos para Henrique não ver que corara.

— Alice?

— O meu nome é Alice. O seu?

— Henrique. Nome de família — disse, encolhendo os ombros —, para ser original.

— Gosto de Henrique. Bem, Henrique, pintei a maioria dos quadros com uma mistura de guache e tintas caseiras. Pretendi tirar partido dos aromas e texturas naturais. Se o seu velho… calculo que pai, não?

— Sim, pai.

— Supondo que o seu pai gosta de madeira, penso que aqueles ali ao canto serão mais do seu agrado. Usei guache com um pouco de água para dar a impressão de aguarela, e tingi a tela com uma mistura de café com cola para obter aqueles castanhos mais rugosos. Que lhe parece?

— A Alice é que pintou estes quadros?

Alice sorriu.

— Sim. Parece-lhe assim tão inverosímil?

— Não, não. Apenas me apanhou desprevenido. Você é uma caixinha de surpresas, não é?

— Quem o não é?

— Ora aí está. Aqueles ali, não é o que diz?

— Sim. Gosta?

— Há algo nestes quadros… Eu gosto, gosto muito, mas sinto que ainda lhe falta dar o seu Grito do Ipiranga. Porque se contem tanto? —questionou-a, mirando as obras.

— Acha que me contenho?

Henrique olhou Alice nos olhos.

— Diga-me a verdade, você não acha?

Alice retraiu-se. Não estava habituada a tamanho à-vontade, a tamanha confiança. Seria justo para Valentim? Henrique atraía-a, todavia despertava em si um outro sentimento. Henrique assustava-a.

— É isto que as pessoas querem.

— Alice, é isto que você quer? Você fez-me gostar dos seus quadros, sim. Não me fez amá-los. Pelo que vejo, fazer-me amá-los está ao seu alcance, bastava exceder-se.

— Se me excedo as pessoas irão odiar.

— E irão amar. Você é boa, está ao seu alcance ser excelente. Primeiro pinte algo que considere ser excepcional e depois pense em como mostrar a sua excepcionalidade às pessoas, essas com que tanto se preocupa.

— Ser excelente — murmurou para si mesma.

— Isso assusta-a mais do que eu a assusto, certo?

— Um pouco, sim.

— Pense nisso — despediu-se. — Pense bem nisso. Vou ali dar mais dois-dedos-de-conversa ao meu cliente.

— Com certeza. Divirta-se.

— Sempre. Prazer em conhecê-la.

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A noite estava negra como breu. Quando abriu a porta do quarto, já Valentim dormia. Pé ante pé, foi até ao guarda-roupa tirar o pijama. Alice não ia dormir ao lado de um homem que não se alegrava com as suas vitórias. Não era justo. Ela merecera aquele reconhecimento. Tinha de acreditar que sim… Trabalhara, tinha jeito, era boa, poderia ser muito mais que somente boa. Valentim já não lhe oferecia incentivo. Ele roubava-lhe a motivação. E ela? Onde estava ela? Ele fazia crer serem uma equipa não obstante ser sempre ela quem o apoiava. Nunca o contrário! Ela… Ela não queria ser mais o apoio dele. Não. Ela hoje não ia dormir com ele. Iria dormir no estúdio.

Contudo, assim que virou costas, Valentim chamou-a. Aquela voz trémula arrepiou-lhe a espinha deixando-a sem reacção.

— Só quero que saibas que, apesar de tudo… Admiro-te. Se quiseres, gostava de te levar a passear durante a próxima semana. A ideia seria irmos, assim, sem destino, conhecer as aldeias onde as estradas nos levam. A ideia seria aproximarmo-nos… outra vez. E encontrarmo-nos…

— Encontrares-te.

— Principalmente isso.

Valentim puxou o lençol para trás e Alice deitou-se a seu lado. O cheiro dele… Era um cheiro que se tornara familiar e, de algum modo, seguro. E ali estava ela, outra vez. Ali estava ela a esborratar os pontos de interrogação escritos apenas há alguns segundos antes. Sentiu os braços de Valentim enrolarem-se à volta da sua cintura e fechou os olhos. Soltou uma, duas lágrimas que dele escondeu. Deixou que secassem por si, apertou-lhe a mão e adormeceu.

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Quando Henrique chegou a casa do pai, trazia consigo um embrulho debaixo do braço. Deu-lhe um beijo

— Um presente.

— Como sempre.

Artur sorriu e pousou o embrulho na mesinha.

— É pesado — comentou.

Assim que o desembrulhou, o que viu fê-lo voltar à infância. Era uma imagem de uma árvore perdendo as folhas em pleno Outono. Uma casa de pedra ao fundo remetia-o para um tempo em que o chão era o seu colchão, a sua cama. Emocionado, abraçou-o.

— Obrigado.

— Não tem de quê. Onde quer colocá-lo? Eu ajudo-o.

— Talvez aqui no corredor. Que achas?

— Acho que fica perfeito. Onde tem os pregos e o martelo?

— No anexo. Mas antes vamos almoçar, já tratamos disso.

— Como estás?

— Bem, e o pai?

— Vai-se andando. A empresa?

— Vai-se também andando — disse com um encolher de ombros. — E então, como se está a dar com os seus novos inquilinos?

— São simpáticos. Andam com alguns problemas, digamos, conjugais. Foram passar uma semana fora. Não os apanhaste por pouco.

— Acontece. Então esta semana está por sua conta… Sabe que me pode ligar sempre que se sentir sozinho, certo pai?

— Sim, sim… Tu, com certeza, tens mais que fazer do que aturar este velhote.

— Não diga isso. Deixa-me triste, sabe?

— Pronto, pronto, desculpa. Vamos almoçar sim? Estou desejando ver como fica a pintura na parede. Senta-te.

— Ainda bem que gostou. Fico contente. Hmm… Que cheirinho bom.

— Bacalhau à Gomes Sá, o teu favorito.

— Pai, não era preciso. Obrigado.

— Sempre às ordens, rapazola, sempre às ordens.

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As malas estavam pesadas. Valentim abriu a porta de casa e pousou-as no chão. Foi ajudar Alice com o resto das coisas quando reparou em algo novo na parede: um quadro. Era bonito e, mais que isso, familiar. Deixou-se ficar ali a observá-lo quando apareceu Artur.

— Gosta?

— Muito.

— Foi um presente.

— É muito bonito.

— Como foi a viagem?

— Revigorante.

— Bom dia Senhor Artur! Como está? — disse Alice mal entrou.

— Bem, obrigada. E a Alice?

— Também, obrigada.

No minuto a seguir, o sorriso perdeu-se. Era o seu quadro que estava ali na parede, a sua tela. Como fora ali parar?

— Gostas Alice? — perguntou Valentim. — É lindo.

— Oferta do meu filho. O rapaz tem bom gosto.

Alice. A sua cabeça fervilhava. Depois do choque, o facto de Valentim não ter reconhecido o quadro como seu fora um balde de água fria. Subiu as escadas e fechou-se no estúdio deixando para trás dois homens confusos. Enquanto tentava recuperar o ânimo ouvia Valentim chamá-la. O som era difuso. Nada do que estava à sua volta parecia real. Teria andado iludida assim durante tanto tempo que não se apercebera da nulidade que era a sua relação? Que homem apaixonado não reconhece os traços da sua amada? As dúvidas sucediam-se ininterruptamente. Abriu uma garrafa de vinho e foi bebendo. A seguir outra e outra. Adormeceu no chão, quase que insensível, entorpecida.

Por sua vez, Valentim não dormira nada. dava voltas e voltas na cama. Levantara-se a meio da noite e fora experimentar abrir a porta do estúdio. Não, Alice não a destrancara. Com a frustração como almofada, deixara-se ficar ali, esperando que amanhecesse, que se fizesse luz.

Quando o sol bateu na cara de Alice, ela levantou-se e dirigiu-se à porta. Quando a abriu, Valentim tombou aos seus pés. Meio baralhado, ergueu-se:

— Que se passou Alice? Como estás? Que te deu?

— Fui eu que pintei aquele quadro.

— Hm?

— Fui eu que pintei aquele quadro!

Alice gritava. Com o cabelo desgrenhado, a roupa amachucada, correu para o quarto, enfiou algum vestuário atabalhoadamente na primeira mala que encontrou e saiu. Saiu do quarto, saiu de casa, saiu da vida de um Valentim perdido, de um Valentim que chorava silenciosamente tentando ordenar pensamentos desconexos. Revoltos. O seu corpo estava rígido, a sua pele branca como a cal, as suas mãos transpiravam enquanto toda a sua alma se debatia numa revolta interior.

Deixou-se ficar ali. Por quanto tempo?

Ninguém sabe.

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O sótão estava nu. Alice passara ali bons momentos. Tinha esperado que Valentim tirasse as suas coisas de casa para não haver possibilidade de se encontrarem por acaso. Não queria vê-lo. Era melhor assim.

O sótão estava nu. Apesar de escasso o tempo que ali passara, muitas foram as mudanças que ele trouxera. Estava grata por isso.

O sótão estava nu. E ela já não se lembrava dele assim… Era maior do que pensara. Iria sempre lembrar-se daquele soalho, daquela luz, daquelas suas dedadas que não conseguira limpar. Lembrava-se de cada quadro que ali pintara. Não eram muitos mas muitos eram os seus favoritos.

Ia-se embora. Faltava apenas despedir-se de Artur.

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Artur andava contente. Nas duas últimas semanas, Henrique tinha feito questão de lhe fazer companhia, regularmente, ao almoço. Era raro. Ele não trabalhava perto.

Henrique tinha-lhe levado uma garrafa de Papa-Figos, um dos seus vinhos favoritos. O filho andava taciturno mas naquele dia… Naquele dia, estava feliz. Pelos vistos tinha feito contrato com um cliente importante e queria festejar. Mais, queria festejar com o seu velho. Isso, mais que tudo, deixava Artur de peito inchado.

A meio da refeição colocou-lhe um embrulho em cima da mesa.

— Abra.

Artur desembrulhou o presente e viu-se perante o relógio, o seu relógio! Frente a frente com o seu olhar surpreso e inquisitivo, Henrique apressou-se a explicar.

— Não me pergunte como lá foi parar mas a verdade é que encontrei o seu relógio em minha casa. Deve ter caído ou devo-o ter colocado no meu saco sem querer. Entretanto, enquanto estava a fazer arrumações, descobri-o numa gaveta, perdido. Provavelmente arrumei-o e, pai, peço-lhe desculpa mas nunca mais me lembrei dele. Sei que me mencionou o seu desaparecimento, mas não relacionei. Desculpe-me.

— Que estranho… Mas sim, não te preocupes, acontece. Não há problema. Ainda bem que o encontraste e te lembraste de mo trazer. É muito importante para mim.

Uma lágrima de crocodilo rolou pelos olhos de Artur. Estava emocionado. Henrique estava aliviado. Mais que isso… Feliz, feliz por ver o seu velho feliz. Levantou-se da cadeira e abraçou-o de forma afectuosa, carinhosa, terna. Deu-lhe um beijo na testa, sinal de respeito, e disse que o amava. Artur chorava e, assim que ouviu uma voz de mulher chamar por ele, num ápice limpou as marcas do choro da sua cara com as palmas da mão e se recompôs.

— É a minha inquilina. Ou ex-inquilina. Veio buscar o resto das suas coisas. Estou aqui! — bradou.

— Queria apenas despedir-me de si e agradecer-lhe Sr. Artur — disse Alice, entrando na cozinha. Aí estacou o passo.

— Henrique?

— Alice?

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