Cacum

 

Cacum

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 Sentiu desaparecer o sono tranquilo que procurara na hora em que se deitara, talvez tão apressadamente como a forma com que desejava ausentar-se da realidade. Como quem corre depressa para o lugar onde quer estar, o sonho tornou-se como um vento forte, disposto a desloca-lo, sem que ele abandonasse o leito. Talvez se tivesse deixado possuir por algum traço curioso ou desconhecido dentro dele, como todos aqueles traços que revelam sentimentos e reacções que nascem, sem que exista uma circunstância óbvia que nos explique, quando e porquê a simultaneidade com o nosso percurso interior. Talvez em algum momento do dia aborrecido que passara ou a hora em que se arreliara com a filha. Talvez o cansaço de não poder repudiar a situação actual, o deixasse mais predisposto a não lutar ou com necessidade de sentir algo novo. Dormia, mas enquanto dormia era como se uma grande inquietude obrigasse o seu corpo a expressões que estão para além de qualquer coerência. Ouvia o barulho, sentindo todo o poder de um ambiente que transformava os homens ali sentados naquela mesa comprida, prontos a passarem a tarde a jogarem, a fumarem e a beberem.. ou seriam eles quem convertiam o ambiente? Estava na loja da Ema. Tarde de domingo, ocasião imperdível para descontrair, desabafar palavrões e beber uns copitos a mais. Cada «copo de três» avivava mais o jogo. Cada absorção do cigarro era seguida pela vaidade de expelir o fumo rindo e imaginando que o poder estava ali e que se poderia perpetuar, mesmo que fosse tão vão e de tão pouca duração como as nuvens de fumo que pareciam não incomodar ninguém. Mas no meio daquele ambiente via a sua menina, a Maria Luísa. O que fazia ela ali? Ah, lembrava-se... todos os domingos lhe dava umas moedas para que ela pudesse comprar a sua guloseima. Era como um prémio que lhe oferecia aos domingos, talvez exactamente pela mesma razão que ele oferecia a si, aquelas tardes na loja da Ema.

- Vá, não demores Maria Luísa! Olha que daqui a nada aparece o Cacum- avisou ele, para que a sua criança não respirasse muito tempo, aquele ar pouco educado. Bastava a palavra Cacum para que a menina e todas as crianças da aldeia obedecessem.

-Cacum!- chamava uma voz rouca no escuro. A este brado cavernoso todas as crianças escondiam os seus pequenos corpos debaixo de alguma mesa ou à noite corriam para a cama mais rápido do que quando corriam para alguma brincadeira. Maria Luísa abandonou a loja a correr, mas o seu amiguinho paralisado pelo medo precipitou-se para debaixo da mesa, tentando esconder-se entre as pernas dos homens que jogavam.

- Ah,ah- riam-se os homens- olha o Cacum! Olha que ele vem para aqui- proferiam os homens, quase aos berros.

O rapaz tremia assustado. Em uníssono, os pés dos adultos pareciam ter acordado; do chão subiam até aos seus ouvidos num ritmo ensurdecedor, quase satânico. Aos olhos do rapazinho todos os pés lhe pareciam os do monstro. Pareciam ameaçar que sabiam onde o encontrar. Mas o homem sinistro, vestido de preto, cujo rosto nunca ninguém vira porque ele o escondia com um enorme chapéu preto, nem entrou na loja. Ninguém se lembrava de ter visto alguma vez o seu rosto.

Uma semana depois fora dado o grande alerta; Cacum tinha morrido há uns dias atrás e apenas o padeiro tivera a curiosidade de ir averiguar o que se passava. Não por preocupação ou qualquer outro sentimento, mas por não ter encontrado no saco do pão o pagamento semanal, do pão que lhe deixava diariamente à porta.

- Pai, posso ir ao funeral do monstro?- perguntou Maria Luísa.

Na época, um funeral era um acontecimento e motivo para a aldeia se reunir e tema para longos debates. Manuel viu o olhar curioso e infantil da filha debruçar-se, num análise adulta, sobre o corpo do velho Cacum..

- Mas pai, ele é tão pequenino e magrinho!

Manuel agitou-se diante da verdade da filha e talvez tenha sido essa verdade, que expulsou o sonho e o tenha deixado agitado, como quem sofre um golpe sobrenatural. Suava... gemia agoniado e intimidado. Lentamente foi tomando consciência do sonho que tivera e sentiu o agro sabor, de que aquele pesadelo tinha sido um conflito com uma realidade esquecida por um longo período de tempo. Deixou-se ficar quieto... esperaria que a noite terminasse...

 

Fernanda R. Mesquita

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