Crónicas de um sem-abrigo

 

Crónicas de um sem-abrigo

Português

O sol nasce, os primeiros raios bate na minha cara, mais um dia longo que tenho pela frente.

Por vezes a vida é tão cruel, tão injusta...

 

- Está frio. Comento para o meu fiel companheiro Sibilo.

 

Ele limita-se a olhar para mim com a pureza do seu olhar, meu gatinho, meu anjo de quatro patas, no meio de tanta solidão ainda tenho alguém que se preocupa comigo.

Outrora era chefe de família, com uma esposa maravilhosa e dois filhos radiantes.

Olho para o céu e as lágrimas querem cair...

 

- Porque partiste tão cedo meu amor? Penso eu.

 

Aquela maldita doença levou o meu grande amor de mim, ficando sozinho no mundo, acabando por ser desprezado pelos meus dois filhos, já homens feitos.

Tiraram o que me restava, deixando-me na rua da amargura.

Tive que trocar o conforto do meu sofázinho pela calçada da rua, o quente do meu colchão por caixas de papelão, perdi os biscates que fazia por me terem difamado, como a vida é cruel.

 

- Está frio Sibilo. Digo tentado aquecer as mãos. - Vamos ver se comemos alguma coisa, acho que ainda nos sobrou algo do nosso jantar de ontem. Divido com o meu precioso gatinho bolachas e um pouco de leite, ao menos ainda conseguimos enganar o estômago.

 

Pego no meu caderno que achei no lixo e num pouco de carvão e escrevo as minhas mágoas.

Só consigo partilhá-las com o meu Sibilo e neste caderno, o meu orgulho foi ferido por aqueles que me sacrifiquei, não mereço.

Já pensei por diversas vezes pôr fim á vida, a esta vida sem dignidade, como queria voltar para os teus braços meu amor.

As lágrimas insistem novamente em cair, sofro tanto.

 

- Vamos ao centro social Sibilo? Está na hora de tomarmos o pequeno almoço e tomar um banho, para irmos á nossa vida. Hoje vou voltar a procurar emprego, espero que não me expulsem como fizeram antes de ontem.

 

Arrumo a minha caixinha de cartão com as nossas coisas e partimos os dois a caminho do centro social.

Quando chegamos há sorrisos de pessoas bondosas que ainda se lembram de um sem-abrigo, vejo dezenas dos meus companheiros de rua, pois infelizmente uns ficaram na mesma situação que eu, outros cedem a drogas.

Neste centro social, deixam entrar animais sabiam? O meu precioso Sibilo também tem direito ao seu pequeno almoço.

Após acabarmos a refeição e tomarmos o nosso banho quente, recolhemos leite, pão, bolachas e algumas peças de fruta, partimos para o nosso caminho da rua.

Começo a tentar ver sítios para procurar um trabalho ou até mesmo um biscate, mas pouca sorte tenho, uns dizem que não precisam e com placa a dizer "Precisa-se de empregado", outros gritam comigo "Saí daqui mendigo sujo".

A minha esperança foi-se novamente, sento-me num banco de madeira e o único conforto que tenho é o ronron do meu precioso gatinho.

Caiu num mar de lágrimas, eu só queria um trabalho para poder sustentar-me, para poder alugar um quarto para sobreviver com dignidade.

 

- Porquê Deus!!!! PORQUÊ!!!! Porque me escolhestes a mim para sofrer tanto?

 

O desespero toma conta de mim, mais uma vez caio na realidade, sou sem abrigo, o preconceito desta sociedade é tão grande que não dão oportunidade a ninguém.

Tenho sessenta e seis anos, de hoje em dia quem é que dá trabalho a uma pessoa da minha idade? Vejo jovens a recusarem trabalhos porque não era o que esperavam, e eu? Quem me dera ter uma única oportunidade, uma única para poder ter novamente uma vida digna com o meu gatinho.

Olho para o relógio da torre, já é quase duas da tarde. – Sibilo, vamos encontrar algo para comermos? Comento com o meu gatinho.

Partimos os dois, na esperança de encontrar algo que se coma nos caixotes do lixo.

Procurei já em seis e pouca coisa encontrei.

 

- Vamos até á Miguel Torga? Pergunto ao Sibilo, normalmente naquela rua há muita comidinha.

 

E partimos os dois para a rua Miguel Torga.

Quando chegamos começo a procurar nos caixotes do lixo do fundo da rua, colocando o mais que posso nos sacos, e chego ao caixote do meio da rua e sinto que estou a ser observado, reparei numa rapariga que fumava um cigarro na varanda do 3º andar, pensei “Deverá ser uma rapariga como os outros jovens”.

Não dei importância e continuei á procura, de repente, oiço uma voz amável.

 

- Senhor! Senhor!

 

Olhei e vi a rapariga, e tentei arrumar tudo á pressa para poder sair dali, pois ás vezes mandam-nos embora.

 

- Espere!! Não tenha medo! Isto é para si. Presenteou me a rapariga com um sorriso doce.

Quando abri o saco, estava uma sandes, um iogurte e peças de fruta, tinha acabado de me dar comida, quando olhei para os olhos dela notei uma tristeza enorme, será por ser mendigo? Pensei.

E eu sentei-me a comer, ela começou a fazes festinhas ao meu gatinho.

 

- Sabe, adoro animais, costumo adoptar e recolher da rua. Diz ela com um sorriso de orgulho.

 

Rápidamente vi que a rapariga tinha algo chamado humanidade.

 

- Não tenha problema em falar comigo. Disse me ela. – Quando estar nos meus dias de serviço aqui, deixar-lhe-ei um saquinho com comida para si e outro á parte para o seu gatinho.

Fiquei sem reacção, uma menina jovem, a dar valor a um sem-abrigo?

Comecei a falar com a menina contando o que se passou na minha vida, e notei que ela ficou com uma cara séria.

- Sabe senhor, eu venho de família pobre e acredite que dou muito valor á vida. Disse ela com os olhos rasos de água.

 

Desejou-me boa sorte e entrou para o prédio.

Continuei mais o meu Sibilo, pensando sempre neste gesto de caridade de uma jovem que ainda não devia ter trinta anos.

Os dias foram passando, e cada vez sentia-me mais só.

Estavamos quase no natal, época tão triste para mim, tentava viver no mundo das lembranças quando o meu amor era vivo, juntavamos a família toda á nossa mesa e havia sempre comida para um sem-abrigo, os muidos, pequenos ainda saltavam á volta da árvore de natal, o quente do nosso fogão dava a harmonia natalícia, mas... é só recordações bonitas que já passaram.

Dei por mim novamente a chorar agarrado ao meu gatinho.

Eu tento aquecê-lo ao máximo, pois ele é o único que me ama incondicionalmente sem querer nada em troca, o único que nunca me abandona.

 

- Sibilo, as senhoras da caridade devem estar a chegar com o nosso jantar. Digo para o meu precioso gatinho.

 

Todas as noites, umas senhoras bondosas costumam vir a algúns pontos de encontro dos sem-abrigo dar o jantar e algumas mantas para nos aquecermos, de facto, já precisava de uma, pois a minha mantinha já está feita em mil farrapos.

E partimos os dois para o ponto de encontro, as ruas estão iluminadas com os efeitos natalícios, até os gosto de ver, a rua já não se torna tão escura.

Reparo nos casais apaixonados a caminharem com as suas compras natalícias, os beijos apaixonados, os abraços apaixonados e rápidamente lembro-me do meu amor, se ela fosse viva no dia de natal fariamos quarenta e sete anos de casados, casamos ainda jovens, eu com dezanove anos e ela com os seus dezassete anos.

 

- Chegamos Sibilo. E pego no meu gatinho ao colo, pois infelizmente costuma haver muitas brigas aqui entre os sem-abrigos e eu protejo logo o meu gatinho.

- Conseguimos ficar no sétimo lugar da fila. Digo para o meu gatinho que se aninha no meu colo.

 

Passado um quarto de hora, chega a carrinha milagrosa com a comidinha.

Começaram a distribuír, hoje até estou admirado que não há brigas, e quando chega a minha vez, elas sempre com uma palavra amiga.

 

- Então senhor Matias, como está? Diz me ela enquanto prepara o meu saco.

- Vai-se indo! Digo eu, ansioso pelo meu jantarzinho.

- Sr. Matias precisa de mantas? Diz me a outra senhora que a acompanha.

- Se não se importar sim, precisava de uma mantinha, pois a minha já tem milhentos buracos. Digo eu.

 

E aquela senhora bondosa tira uma manta do género de um edredom fofinho, hoje sim eu e o meu sibilo vamos dormir quentinhos.

Tudo pronto para voltar-mos ao sítio da televisão, normalmente eu e o meu precioso gatinho, jantamos á frente de uma loja de eletrodomésticos e tem televisões na montra.

Enquanto jantamos vimos o noticiário.

 

- Sibilo, já reparastes! É só desgraças, não há-de o povo andar mais na miséria com estes ladrões a roubarem. Digo eu indignado.

 

Acabamos o nosso jantar mas ainda ficamos mais um pouco para ver a novela e depois da novela acabar vamos ter com os nossos amigos também eles sem-abrigo para jogarmos ás cartas.

A nossa noite acaba rápido, e quando dou por ela já é meia-noite.

Chegamos á nossa casinha de cartão, vou guardar a nossa comidinha que restou do jantar e a ceia que as senhoras da caridade dão, e faço a nossa caminha com a belíssima manta que nos foi dada.

 

- Hoje vamos dormir que nem anjinhos. Digo a sorrir para o meu precioso.

 

Até o Sibilo mia e faz ronron em cima da mantinha de feliz que está.

Aninhamos os um no outro e adormecemos.

Novo dia á vista, está frio, mas... acordei alegre e bem disposto, o meu gatinho ainda dormia, fiquei a olhar para ele durante algum tempo, ele trasmitia-me paz, serenidade, harmonia, o que queria era conseguir um trabalho, um quartinho e dormirmos os dois numa cama confortável sem apanhar frio nem chuva.

Hoje é dia de ir á Miguel Torga, de certeza que tenho lá o meu saquinho e a caixinha de ração que a menina deixou.

Começamos pelo centro social para tomarmos o pequeno almoço, o banho quente, e rápidamente vamos até á Miguel Torga, e vejo o saco com os mantimentos e...

 

- Um envelope!?!?!?!?!? Que será que tem nele? Penso curioso.

 

Está dirigido a mim, rápidamente abro e começo a ler.

 

Sr. Matias.

Espero que se encontre bem.

Tenho boas novas para si, uns amigos precisam de alguém que lhes tome conta da casa, pensei em si.

Eles dão casa e alimentação, pagam-lhe um ordenádo e aceitam o gatinho também.

Também queria fazer-lhe um convite, se o senhor mais o seu gatinho aceitariam vir passar o natal comigo, com o meu marido e com a nossa família.

Se aceitar, ambos os convites, esteja no Sábado pronto ás 10h00 da manhã com as suas coisas todas aqui na Miguel Torga que eu e o meu marido vamos buscar o senhor e na segunda conhecerá a sua futura casinha e o seu futuro trabalho.

Feliz Natal

Maria”

 

Li  e reli, chorei não de tristeza, mas de felicidade, um trabalhinho, uma casa, ser feliz com o meu Sibilo e ter um natal em família.

Abracei o Sibilo, dancei com ele, feliz que estava e ele também estava feliz.

 

- Sibilo vamos ser felizes? Pergunto a ele, ele mia e encosta a sua cabeça na minha face.

– Espera, hoje é sexta-feira, Sibilo temos de ir, temos muita coisa para arrumar para amanhã começarmos uma nova étapa na nossa vida.

 

Todos notavam que eu andava feliz, contei aos meus amigos o presente de natal que tinha recebido e todos ficaram felizes por mim, fizeram-me uma despedida inesquécivel.

Nessa noite olhei para o céu e agradeci a Deus por ter realizado as minhas preces, rápidamente veio-me o sorriso do meu amor ao pensamento.

 

- Meu amor, vou sair da rua, vou ter um trabalho, uma casinha, e em quase três anos na rua vou ter um natal em família, orgulha-te de mim meu amor. Disse com as lágrimas nos olhos e adormeci.

 

Sábado, hoje começa um novo dia, uma nova mudança.

 

- Sibilo, acorda, são oito da manhã, está na hora de tomarmos o pequeno almoço no centro social e tomarmos o banhito quente e depedirmo-nos das senhoras bondosas do centro social.

Disse eufórico. – Depois voltamos aqui para pegarmos as nossas coisas e vamos em rumo á nova vida.

 

Hoje é véspera de natal, era para ser a terceira véspera de natal na rua, mas esta véspera de natal será com um novo olhar para a vida.

Chegamos ao centro social, tomamos o pequeno almoço, o nosso banhito quente, e uma das senhoras vê-me todo arranjado e bem penteado e pergunta:

 

- Sr. Matias está tão bonito hoje?

 

E eu contei o melhor presente de natal que tive, elas emocionaram-se, abraçaram-me e desejaram-me as maiores felicidades do mundo, despediram-se também do Sibilo.

Fomos até ao nosso abrigo buscar as nossas coisas e caminhamos em rumo á Miguel Torga.

Faltava cinco minutos para as dez da manhã, estava nervoso, ansioso.

Após um quarto de hora estava a ir abaixo, a menina não aparecia.

 

- Será que me enganou? Pensei eu. – Só pode ser atraso. Desesperava.

 

Quando passado mais cinco minutos, vejo aquele sorriso de anjo a apróximar-se de mim.

Cumprimentou-me e disse:

 

- Pronto para uma nova vida?

- Sim. Disse eu firme.

 

Conheci o seu esposo, um rapaz adorável.

Quando chegamos, ela colocou á vontade em sua casa, mostrando-me onde ia pernoitar hoje e amanhã.

A noite foi maravilhosa, ganhei dois presentes e o Sibilo também, ele estava feliz com outros gatinhos á sua volta.

Segunda-feira lá fomos nós em rumo á minha nova vida, era um casal dos seus quarenta e poucos anos qu viviam numa quinta enorme, aceitaram me a mim e ao Sibilo de braços abertos, mostrando-me a casinha que era para mim e o trabalho que eu teria que fazer.

Passou um ano, e estou novamente em véspera de natal, na casa da Mariazinha, tenho a como neta e ela como avô.

Submeti-me a alguns tratamentos psicológicos, pois sofri muito, e outros problemas de saúde mas é devido á idade.

Mas sou feliz.

Nos primeiros tempos custou-me a dormir na cama, doia-me o corpo pois estava habituado a dormir no papelão, mas após algum tempo consegui habituar-me.

O meu Sibilo encontrou o amor da sua vida, uma gatinha que recolhi na rua, chama-se Freda.

Somos os três felizes, já não passamos fome, nem frio, antes fugiamos para entradas de prédios ou para a estação de comboios quando chuvia, agora sentamo-nos os três á frente da lareira a ouvir a chuva e o vento.

Sinto uma paz enorme dentro de mim.

Obrigada meu Deus por me teres deitado a mão, e relembro o momento em que queria fugir da minha Mariazinha.

Já sou bisavô sabiam? A Minha Mariazinha foi mamã de uma linda menina a quem deu o nome de Vitória.

Tenho-a agora comigo ao colo, é muita emoção num ano só, troquei lágrimas por sorrisos, rancor por paz, tristeza por alegria e ódio por amor.

 

- Vôzinho, anda jantar. Diz a minha Mariazinha com um sorriso de orelha a orelha.

 

Junto-me com a minha família, agradecendo a Deus por tudo.

Fui sem-abrigo, sofri, lutei, por diversas vezes quis desistir acreditando que nunca sairía daquela vida de sofrimento, pensando que ia sofrer com o preconceito para o resto da minha vida, mas não, consegui ser feliz com o meu precioso Sibilo, agarrando uma nova chance na vida, uma nova vida.

Género: 

Comentários

ola

gostei de ler o conto. Muito bom

Obrigada :)

Obrigada :)

:)

:)

Top