Desamor

 

Desamor

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O que mais custa é continuar. E todos à minha volta se compadecem com o que pensam ser uma verdade única. Pensam que tenho saudades. Que o meu coração se aperta no Natal, que se desmancha nos enlaces onde vou, que se dilacera a cada ano no dia em que cumpriríamos mais um aniversário de casamento. Que me prendo nas fotos espalhadas pela casa, que a revejo nas minhas filhas. Que ainda lhe adivinho os cheiros no amaciador que teimava usar e que a Rosa, que fui mantendo por causa das miudas, ainda usa. “Para lembrar a senhora”, assim me disse. E não esta equivocada. Aquele cheiro arrasta-me para onde não quero voltar. “Quero o divorcio, Miguel. Estás longe de ser a pessoa com quem pensei ter-me casado”. Ouviu e calou-se. Normalmente diria qualquer coisa, tentaria demovê-la, ou até contrariá-la, mas ficou magoado. Virou-se na cama, ajeitou-se e deixou-se ficar. Depois de um pouco, abandonou-se à evidencia de que provavelmente Maria tê-lo-ia dito sem intenção, daquelas coisas que se dizem e não se sentem.  Pensou tocar-lhe ao de leve, podia ser que ela se encostasse a ele, mas conteve-se. Ficou assim algum tempo, largos minutos que lhe pareceram horas, e percebeu que não valeria a pena. O incomodo era só dele, Maria não queria saber. Tinha-o proferido sem remorso, sem intenção de recuo. Passou para o modo tristeza e desencanto, e depois para a raiva e foi assim que adormeceu, farto de mágoa e de desamor. De manha, antes mesmo do despertador tocar, tomou banho, vestiu-se e saiu e entendeu que poderia bem escusar-se de beijá-la. Se ao menos a tivesse olhado, ou lhe tivesse dado um beijo, não de amantes, mas de amigos, tê-la-ia percebido fria e não a teria deixado abandonada a si mesma e à sua sorte. 

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