E o choro nunca mais veio

 

E o choro nunca mais veio

Português

Estava tão ferido e colonizado de medos que as palavras tinham-se-lhe travado a fundo debaixo da língua. A dor era tanta que rebentava com violência a pele que revestia um corpo de outro tempo. Queria chorar, suplicava por esse alívio que só o sal das lágrimas traz à alma, mas como há muito que chorava para dentro, já o sangue lhe havia bebido o antídoto que agora reclamava. Tinha crescido demasiado depressa, da infância pouco recordava, e quando folheava as parcas memórias compiladas apenas por descargo de consciência, a maioria era um acervo de lembranças que preferia esquecer. Sempre fora um pouco assim, o que o magoava cravava-se-lhe com unhas afiadas no coração; já o que o curava sumia-se como a chama de uma vela entregue ao sopro decidido de uma criança feliz. Lembrava-se de ser pequenino e das extensas searas de dúvidas que cresciam bravamente no chão do quarto. Nessa altura, dava-lhe para questionar tudo; havia laivos de alegria a povoarem-lhe a cabeça donde pendiam concisos caracóis. Dizia ele que os cabelos eram o prolongamento das ideias que germinavam lá dentro, vestígios lampejantes dos quais ninguém, senão ele, se apercebia. - Só eu olho para mim como deve ser - , pensava. Temia que se não cuidasse de estar atento, pudesse num ai desaparecer por entre o trigo que a imaginação semeara no quarto. Por vezes, a tristeza era tão penetrante que se permitia chorar para esvaziar o peito, mas como não sabia ser pequeno, achou, muito cedo, que já era crescido para se pôr a chorar. Alguém o convencera, com maldade, de que os grandes e os adultos não choram e, então, ele que era ainda pequenino, queria desapequenar-se para não chorar. Era tudo medo e vergonha. Os caracóis desfizeram-se na única hora em que cedeu ao cansaço. Chorou uma noite negra inteira. Depois, foi só tristeza. E o choro nunca mais veio.

 

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Comentários

E o choro nunca mais veio

Seu texto é de uma beleza quase palpável. O caminho sinuoso do personagem é traçado no sentimento: que coisa linda!

Tenho um poema e um conto que fala das lágrimas dos homens, modéstia às favas: lindos também e estou encaminhando para outros dois concursos, contudo, seu jeito de descrever as questões , os sentimentos do personagem: é lindíssimo, visceral e ao mesmo tempo , de uma doçura. 

Lindo trabalho. 

Neide Heliodória

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