Elogio ao escritor

 

Elogio ao escritor

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A cada passo que dou, as gaivotas vão levantando voo. Estou na praia. A cada gesto que faço com o braço, ouço o grito de continência dos soldados. Estou num campo de batalha em hora de descanso. Cada vez que grito “olá!” ouço um avião cheio de turistas a aterrar. Estou no aeroporto. É o som das ondas a rebentarem junto da areia molhada, são os capacetes de lata, é o som das rodas das malas de viajem a rolar pelo chão. É esta confusão de cenários que saltita em frente aos meus olhos quando tenho apenas um livro na mão. Sentada, sossegada, no meu sofá. Estamos cá todos, na sala: eu, os turistas que entretanto chegaram à praia e os soldados com aquele frenesim de quem não vê a família há muito tempo. Todos juntos, sem nos conhecermos, sem termos uma linha em comum, mas todos na história que entretanto se desdobrará nas páginas antigas deste livro. Que livro é? Não sei. Mas já gosto dele e ainda só lhe senti o cheiro a velho.

É desta forma que gosto de passar os meus Domingos de Inverno, os meus dias de Verão e os finais de tarde na Primavera. No final destas contas, gosto de passar todos os meus dias com os livros. E quem sou eu? Uma pequena leitora que, como tantas outras, pára em frente às montras das livrarias a descodificar as capas dos livros em destaque. Se sou nova? Se vou velha? Não interessa. A história contará o que interessa. E o que interessa é que as palavras me levam longe. Levam-me até ao teu pai, até à prima desaparecida da vizinha Adelaide e até à cadela Jóia que foi roubada numa noite de chuva. Se existem? Todas as personagens existem; pelo menos, eu quero crer nisso. Se não existem com braços e pernas, então existem com cabelos brancos e com lábios de boneca. Existem com coração de algodão e com pezinhos de lã, como quando eu me levantava de noite para espreitar quais as prendas que a mãe tinha escondido no armário do costume. Elas existem. Assim, sossegadas. Assim, inesquecíveis. As personagens.

A rotina queima-me a esperança. As manhãs sem sol chateiam-me, os homens aborrecidos da cidade revoltam-me; a pouca esperança que guardo, deposito-a nos homens de ideias. Naqueles que dão luz à mudança, que criam puzzles de palavras coloridos que enchem jardins em dias de sol. Esses sim, fazem-me sorrir de feliz; fazem o avião subir cada vez mais. Mudam rotas, inovam. Dão a conhecer.

 É aqui no sofá que viajo todas as Sextas-feiras. E todos os Sábados. Todos os dias. Acabo o jantar, lavo a loiça e faço as malas para apanhar o avião. Às vezes o check-in está ainda fechado quando chego, noutras a hospedeira manda-me saltar fora do avião e já aconteceu apaixonar-me por um jovem italiano – que, noutra história, era bisavô da dona Josefa que mora ao lado da tia Júlia. Sento-me, cruzo as pernas e deixo que o livro faça peso nas minhas mãos. Seguro-o com toda a minha calma e vou folheando as páginas que se preenchem com palavras. Às vezes imagino as palavras às cores e vejo um arco-íris, mesmo que esteja escuro lá fora e que a noite esteja pouco alumiada pela lua.

As palavras costumam ter um poder especial. Quando olho para elas, imagino logo mil cenários. São as árvores com braços, é o São Sebastião que floresce do nevoeiro, é o possível que ganha ao impossível. As palavras trazem(-me) aqueles segredos que poucos sabem. Daqueles segredos que todos pagavam para saber mas que não procuram com vontade de encontrar. Quietos. Desertos para verem a luz do dia. Com fome de conhecer a vida fora da caixa dos segredos desconhecidos. E eu deixo-os sair. Faço-lhes chá, ofereço uma ou duas fatias de pão torrado e conto-lhes que há pessoas que conhecem ainda mais segredos do que eu; que essas é que são as indicadas para tomar conta deles e para lhes mostrar uma forma de chegarem até milhares e milhares de mentes pensantes em todo o mundo. Esses especialistas em segredos são os escritores. Aqueles que pegam na imaginação, nas histórias de outros e que trazem vida ao papel. Esta vida que me enche os dias que podem parecer vazios a quem me observa do lado de fora da janela da sala. Mas enganam-se, observadores! Eu passo as Sextas-feiras com companhia. E os outros dias também. Com o peso do livro sobre as minhas mãos. São dias cheios.

No mês passado conheci um jornalista que vivia amedrontado com as vozes da censura. Mal dormia de preocupado. Quase tinha abolido objectos vermelhos lá de casa e falava sozinho muitas vezes. Os vizinhos chamavam-lhe maluco, mas quem lhe deu vida, quem traçou as palavras que lhe deram uma história, achava apenas que ele era um pobre velho. Um homem de sucesso com medo dos seus próprios pensamentos. Na altura fez-me lembrar aquela história antiga que a avó me contou quando eu era mais pequena. O conteúdo da história não interessa; eu não sou escritora.

Às vezes gostava de saber escrever como os escritores. Trocava o meu sofá por uma secretária moderna e desenharia personagens modestas mas com histórias dramáticas. Daquelas histórias que causam um reboliço mesmo por entre quem nunca as chega a ler. Histórias que deixam o tempo parar mesmo enquanto ele vai passando. Devagarinho. Mas eu não sou escritora. Não sei escrever como aqueles que vivem disso. O ensino secundário ensinou-me onde deixar cair as vírgulas, mas de vez em vez também as deixo na gaveta. Tenho ali algumas canetas de tinta permanente, mas nem essas deixam o meu nome na capa de um livro. Daqueles livros que morrem de velhos na nossa imaginação mas que sempre têm um lugar especial nas prateleiras de clássicos da livraria mais próxima. Não sou escritora. Mesmo quando deixo um bilhete com um recado para a minha mãe, não sou escritora. E tenho pena! Talvez um “fui à cidade, volto já” pudesse ser o mote para um romance. Talvez fosse um sucesso. Talvez.

Mas ser escritor deve ser bem mais complicado. Costumo pensar sobre isso. Gosto de imaginar alguém que seja escritor. Os mil cadernos espalhados pelo apartamento, os guardanapos riscados, os rascunhos que enchem o caixote do lixo. Imaginar alguém. É isso! Curvado sobre a secretária, esse alguém escreve. Preenche o papel com letras como se os músculos da mão estivessem num estado frenético incontrolável. Sinto-lhe o desespero, a dualidade da existência. A pele da testa franzida, o olhar vazio que quase ilustra as palavras que vão ficando no papel. Cheira a charuto refinado. Escreve. As mãos, suaves, mostram as palavras que lhe assolam a mente. Passa o dia nisto. Levanta-se para olhar a janela molhada, dança o olhar pelas chamas da lareira acesa e volta a sentar-se na secretária. Às vezes esse alguém parece perturbado. Questiona-se sobre a imortalidade, roga pela eternidade e pela magia das palavras. Escreve estas histórias deliciosas que jamais passarão em branco nos dias que correm e nos que correrão de futuro. Escreve sobre todos os seres que devoram palavras com a ânsia literal de explorar o - até então - desconhecido. Pelo menos, é nisso que quero acreditar. Mesmo quando o sono se apodera de mim e da minha imaginação.

Anoitece cada vez mais. O livro nas minhas mãos. Não me levanto. Pelo menos, não agora. Quero ficar sentada largos minutos para absorver toda esta paz. Olho em meu redor. Há quadros espalhados pelas paredes da sala. Há fotografias de família ainda a preto e branco, há sofás de pele e mesas de madeira trabalhada com adornos relativos ao século em que foram elaboradas. Inspiro o cheiro a papel antigo. É um livro. São palavras de alguém para outro alguém. É um maço de papéis cheio de história. Vida. Pessoas.

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