Guerra

 

Guerra

Português

Se é costume dizer-se que o carteiro bate sempre duas vezes, essa não passa de mais uma mentira neste mundo delas feitas. Naquele dia, um único toque seco da aldraba na madeira foi o que bastou para anunciar a cascata que lhe brotaria em catadupa pelo rosto, com a fúria dos dilúvios que, de tempos a tempos, levam consigo civilizações e homens – afinal, era a perda do seu que aquele trazia.

Dava a sopa aguada ao bebé quando o som lhes aconteceu. Com mais fadiga do que zelo, colocou o rebento nos braços e abriu a porta, o incessante mamã, mamã ignorado. Quase apreensivo, um homem demasiado velho estendeu-lhe o envelope negro. Foi esse o instante em que o mundo parou, congelado, e ela com ele. O impotente mensageiro ia já na esquina quando sentiu o bater da porta – o selar de um inferno que dava graças por não ser seu.

Lá dentro, a criança desinteressava-se pelo choro materno; brincava agora com o pião de corda deixado pelo pai antes de partir, um piscar de olho cúmplice a substituir o misto de ternura e dor desmesuradas que temera demasiado mostrar. A mulher abriu a carta, enxugou as lágrimas. E começou a ler. Exma. Sra. Josefa Teixeira, escrevia uma qualquer voz, lamentamos informá-la do falecimento do seu cônjuge, Manuel Teixeira, na frente de guerra guineense.

O resto não importava; desamparou o papel. Anestesiada, acariciou o ventre, onde repousava, alheada, a derradeira herança do homem a quem dera o corpo, a alma e tudo. Então, um pontapé inesperado sobressaltou-a: era a vida que se prenunciava, tal como a morte se fizera chegar naquela velha mão – a vida que é tudo, mesmo quando é nada.

Baixou-se para a inocência intocada dos olhos enormes. Manuel, disse-lhes. Este vai chamar-se Manuel. E, contra tudo, sorriu.

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