Mística de uma estação

 

Mística de uma estação

Português

Chego a perguntar-me se é normal sentir tantas vezes o turbilhão de sentimentos que passam pela minha cabeça. Fosse eu o único actor desta vida, mas existem vários actores e tu às vezes incluiste neles, mesmo na passagem de algo tão puro como o amor para o caos da dor e injustiça derivados de mágoas com causas insignificantes, mas que flagelam a alma mesmo assim.
Mágoa, medo, abandono, dor ou mesmo traição são sentimentos que empurram com sucesso tudo o que antes sentíamos para um abismo sem fundo a ponto de esquecermos o que antes nós construímos. Talvez sim, talvez...mas é esse "talvez" que me leva a inverter o rumo mal desligas o telemóvel por não quereres falar mais comigo. Se antes a minha ida a Lisboa tinha como objectivo um simples passeio, agora só penso chegar à estação onde o teu comboio parará e mostrar-te o quanto estás errada.
Faz frio em Almada e consigo ver facilmente o vapor da minha respiração cada vez mais denso à medida que vou acelerando o passo. Não sei ao certo quando chegarás e a única pista que me deste foi "chego cedo". São 1652 e pelo site da CP só chegarás às seis da tarde, o que a um Domingo e estando na margem oposta pode ainda assim ser uma missão impossível. Entre passar o desafio dos transportes e conseguir ainda comprar algo para te surpreender (porque será que mesmo zangado penso nestas coisas para ti??), uma hora é pouco, tão pouco...
Já passa das cinco e só agora consegui apanhar o metro para Cacilhas. O condutor deve ser novo porque o metro vai devagar ao contrário da minha ansiedade que só aumenta. Tento fazer contas e planos em antecipação para tentar solucionar o sabor da derrota que paira em mim e ainda nem apanhei o cacilheiro. Corro para o cais e consigo ainda passar o bilhete a tempo antes de bloquearem as portas de entrada mas já estão a começar a fechar a cancela ao longe. Passo de lado mesmo à justa entre as duas portas da cancela que batem rente às minhas costas e só abrando ao passar a prancha já para dentro do barco. Inclino-me num dos muitos bancos de plástico e tento aproveitar a pausa da viagem para pensar no que fazer a seguir. Serão cinco e meia quando pousar novamente os pés em terra e meia hora até ti implica rezar à florista onde compro sempre as tuas rosas, pois nem todos os domingos ela abre e menos domingos ainda tem rosas a esta hora. Entro na loja e basta a Dona Amélia ver-me que pega logo num molhe de rosas e começa a prepará-las. Já sabe o que quero e como as quero apesar de reparar que algumas não são dignas te ti e ralho zangado para que as tire (sabes que só me zango no momento, depois passa?). Enquanto se ultimam os acabamentos do teu ramo tento pensar em alguma escrita que te encante. Certas coisas nunca mudam e o universo de palavras existentes nunca conseguiu alimentar o nosso universo de sentimentos. Recebo o ramo na mão e meto o cartão escrito lá dentro. A Dona Amélia ainda tenta dizer-me que tem molas pequenas para prender o cartão, mas já estou fora da loja a ir directo à estação de metro para chegar até ti. Ainda só dei meia dúzia de passos e reparo que estou a ser bombardeado por olhares ternurentos e sorrisos silenciosos de quem adivinha os meus intentos. Toda essa envolvência que me segue mesmo à distância leva a interrogar-me se é tão incomum um Homem fazer coisas destas.
O tempo não dá tréguas e é no impasse de não conseguir descer as escadas com a rapidez desejada que começo a acreditar que tudo foi em vão. As escadas apesar de rolantes estão apinhadas de pessoas e dos seus sacos com as compras de natal, o que torna a minha progressão lenta, senão estática por vezes. Tens de agradecer a um grupo de jovens que por acaso olharam para trás e viram o meu desespero, deixando-me passar e gritando ainda "DEIXEM-NO PASSAR!", "FORÇA!" e "BOA SORTE!". O pedido deles não passa alheio a ninguém e um corredor estreito abre-se como por magia para mim. Passo a sorrir por toda a gente que me vão deixando passar dizendo frases de apoio ou dando até palmadas nas costas conseguindo abrir até ao metro uma passadeira imaginária só para mim. Foi este corredor estreito mas suficiente largo para eu passar que me fez chegar ao metro antes que as suas portas se fechassem. São 1755 e agora sim, já vejo alguma esperança em te surpreender. E tudo graças a gestos simples desprovidos de qualquer egoísmo como um simples "chegar-se para lá", não fossem todas as vitórias conseguidas através de pequenos gestos...
Já é de noite e os vapores que a estação liberta vêm-se claramente na difusão das luzes dos seus candeeiros, criando a aura mítica comum que se costuma ver nos filmes que tanto gostas. Tento procurar a linha em que irás chegar mas é o anúncio da tua chegada que me elucida. Já vejo as luzes do teu comboio ao fundo no horizonte invisível da noite e escondo-me para que não me vejas. Os segundos vão passando e não sei porque, torturam-me alimentando a minha ansiedade em te ver. Mereces uma passadeira vermelha à tua chegada mas por favor perdoa-me porque não existe tecido suficiente neste mundo para todos os teus passos.
O comboio para e tento ver de entre as pessoas que saem e vão às suas vidas onde estás tu. O fluxo de pessoas vai diminuindo à medida que os segundos vão passando e continuo a não te ver (onde estás??). Da revolução de pessoas apressadas com os seus haveres, agora só vai passando uma ou outra menos célere e é nesse intervalo de espaço/tempo que finalmente te vislumbro e mais uma vez me maravilhas. Trazes os sapatos pretos que te ofereci e que tanto adoras usar, deixando-me inchado sempre que os usas. Não é fácil satisfazer-vos mulheres e eu orgulho me de tanto a tanto conseguir realizar esse feito contigo. Acho até que foi das melhores prendas que te dei, assim como o relógio que levas ao pulso enquanto puxas a gola do teu casaco bordeaux para ti, dizendo a quem só te ama que tens frio. Esse relógio tem um rival, o que o teu pai te ofereceu à já uns anos mas não faz mal que gosto do senhor apesar de ainda não ter pedido a sua licença para namorarmos. Talvez quando me levar à tua terra e me ensinar uma coisa ou duas sobre a vida lá quem sabe.
Deus como és linda! Podia ficar aqui a admirar-te eternamente, pois admirar-te é tão bom mas só ficando a olhar para ti morreria certamente.
O teu olhar cabisbaixo sem prestar atenção ao chão que andas diz-me que estás longe, no teu mundo com os teus pensamentos, o que me faz aproximar-me de ti sem pressa. Fico lado a lado contigo a acompanhar-te e como não notas este tolo apaixonado pego na tua mão direita, travando a mala que trazes e fazendo-te virar para mim enquanto te mostro o ramo de rosas e faço parar a tua vida. O teu olhar de surpresa é ultrapassado pelo teu sorriso de felicidade fugaz, pois não deixo mais nenhum segundo passar sem te beijar como se não houvesse amanhã. E não há. Apenas há o presente do meu beijo que será substituído pelo futuro de um abraço teu que apagará o passado vivido de erros nossos. E depois disso, depois disso talvez o tempo volte a andar…Talvez, quando te quiser largar…

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