Não basta viver

 

Não basta viver

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Não quero nada. Nada, ouviste bem. Estou farto de tudo que me tens dado. Se isto é tudo, não quero nada. Quero que me deixes em paz, que não me sugues mais a alma e o tutano. Desgraças-me. Destróis-me. Desorganizas-me. Raios te partam, mulher, és o tornado da minha vida. Quero odiar-te, descobrir em ti pormenores horrendos, curvas de enjoar, algo que me faça virar-te as costas e respirar de alívio. Quero gritar contigo, gritar na tua cara, encher-te de perdigotos ácidos. Gritar a sério. Quero que me odeies. E vais odiar-me quando eu gritar, para um quarteirão inteiro ouvir, que sou miserável a teu lado. Que não me fazes feliz, que me irrita profundamente essa tua maneira de ser. Imaginar-me contigo, daqui a vinte anos, dá-me vontade de chorar como um menino. Tira-me o sono. Revolve-me as entranhas. É isto que te vou dizer e tu vais odiar-me, ah vais. Como é possível ser-se assim, como tu és, esse ser irritante que defrauda o meu sonho de felicidade, sempre que respira o meu metro quadrado de oxigénio?

Mais ou menos aqui no meu discurso, vais sentar-te (sim, até agora estiveste de pé), com os olhos marejados e o lábio inferior a tremer, e olhar para mim como se o mundo pudesse acabar nesse instante. E achas, porventura, que isso não me preocupa? Preocupa, pois. De tal forma que ainda não consegui fazê-lo. No entanto, gosto de imaginar que acontece, tal e qual como o visualizo, e que nem chegas a percebê-lo. Sonho que te arranco o tapete debaixo dos pés e te deixo cair, desamparada. Era bem mais fácil se me desses um motivo para o fazer. Um erro teu, pequenino, uma incongruência que encobrisse a minha covardia e me deixasse escapar incólume. O José queixou-se da mulher uma noite destas, num dos nossos jantares das quintas-feiras. Pelos vistos, a Amélia tem tido mais aulas de Pilates do que as que paga. O homem não dorme, não sossega. E eu, a ouvi-lo, cheio de vontade de o abraçar e dizer: “Parabéns, amigo. Que sorte a tua! Já podes mandar essa deslavada à fava e viver à grande.” Era o que eu queria ter dito mas os olhos cheios de lágrimas do José impediram-me de abrir a boca. Quão patético consegue ser um homem destroçado pelo ciúme?

Quem me dera, Leonor, que fizesses algo assim. Que arranjasses um amante, um vício, uma mania, uma desculpa cómoda para eu te deixar. Insistes em ser a mulher perfeita, tudo absolutamente imaculado: a casa, as minhas roupas, as refeições. És pontualíssima. Sorridente. Competente. Bonita. Inteligente. Paciente. Irritantemente fiel. Todos te adoram. Todos me lembram o quão perfeita és e a sorte que tenho em te ter como mulher. E eu, furioso e cáustico por dentro, sorrio, simplesmente. Como lhes poderia explicar que a perfeição, afinal, não chega, se eu próprio não sei porquê? Como lhes ousaria revelar que, aquilo a que chamam perfeição, talvez não passe de total concordância, insossa e violenta? Como? Só me resta esperar de ti a falha, o erro que não vou perdoar, para me ver livre de ti. Então erra, pelo amor de Deus, erra. Faz qualquer coisa que transgrida a estrutura organizada da tua – nossa - vida. Deixa-me usar o teu erro a meu favor e sair bonito na fotografia. Deixa-me culpar-te por não te querer, assinar em baixo com letra sofrida, e abrir os braços ao mundo para que este me absolva da minha sacanice. Vá lá, Leonor, não sejas egoísta…

Alexandra Vaz

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