O de impacto e o latente

 

O de impacto e o latente

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Há dois tipos de sofrimento. Aquele em que o homem se depara com uma tragédia, tendo tido ou não influência sobre a mesma, como é o caso da morte de um ente querido, ou de um processo de divórcio.
Não me tomem por redutora, mas esses tipos de acontecimentos são apenas isso - acontecimentos. Meras situações. O ser humano, como ser em constante mutação, ultrapassa eventualmente todo o sofrimento - chamemos-lhe "sofrimento de impacto" - destas situações adversas. Cada um com ritmos e rituais próprios, mas passam sempre à frente.
Contudo, há um outro tipo de sofrimento. O "sofrimento latente", que tem por objetivo testar o ser humano, de forma constante. Testando os seus limites. Funciona como "ruído branco", o qual passa, quase sempre, despercebido; mas que não tem intenções de partir e, portanto, torna-se inerente ao homem, agarrando-se à sua alma e sugando as suas energias, quando vem ao de cima - à memória consciente.
Talvez seja este sofrimento latente aquele que leva à depressão, a problemas de ansiedade e a comportamentos obsessivo-compulsivos. O homem não consegue simplesmente afastar-se dele. Passar por cima. E não porque está cansado, e muito menos porque não quer, mas sim porque não há absolutamente nada que ele possa fazer para alterar este paradigma no qual ele habita. Pode, claro, tentar ser feliz - e pode realmente chegar a sê-lo, momentaneamente. No entanto, há sempre esta nuvem carregada, pesada, a pairar sobre si. Mas é precisamente por viver esta felicidade momentânea, que este tipo de pessoa é a mais puramente feliz.
Então, ela não deixa de ser feliz, mas sente-se ansiosa, uma ansiedade atenta e alerta que olha constantemente para trás quando vai na rua.
Então há a consciência de que algo não está bem e, mesmo que essa pessoa durma esta noite essa nuvem vai lá continuar.
A pior merda, portanto, não é fazer merda, bater com a cabeça na parede. A pior merda é mesmo não poder fazer merda nenhuma perante uma situação de merda.
Talvez cada ser humano sofra um bocadinho deste sofrimento latente, daí haver, por vezes, nós presos nas gargantas, quase como manápulas, prestes a sufocarem-nos a qualquer momento, à espera que demos sinal. Repara: nem sabes bem o porquê de eles estarem lá, mas estão.
E talvez - mas só talvez - a única solução para o sofrimento latente seja morrer. Ou matar.

Ou tirar partido de cada momentânea felicidade, sentir todos esses momentos como se os próprios formassem novos constituintes do nosso corpo.
Tentar agarrá-los à medida que eles se evaporam.
Resignarmo-mos à sua partida mas sempre conscientes que, brevemente, essa felicidade voltará a arrebatar-nos, tornando-se outra vez parte da nossa própria matéria orgânica. Ou não (?)

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