Os Dois Velhos

 

Os Dois Velhos

Português

Envelhecemos. Repara, a casa é agora imensa, quase nos engole. Vê. Somos agora dois velhinhos amarrotados pela própria narrativa. Que viagem rápida. Se eu soubesse que a vida seria, assim, escorregadia, teria-me poupado ao sono, teria acordado mil vezes mais só para reter o teu corpo adormecido paralelo ao meu. Ninguém nos diz, com seriedade, que a vida é letal. Falta coragem. Quem quer envelhecer antes do tempo? Quem quer aperceber-se? Se eu soubesse, teríamos ambos sido insónia chamejante, reinvenção imarcescível das infindáveis tardes de Verão. Mas os velhos são tudo menos retroactivos. Estamos sós, as paredes da casa já não pulsam, já nem é justo chamar-lhe casa. Entro e deparo-me com salas sucessivas, quartos remotos onde já ninguém pernoita. Mobiliário obsoleto a atravancar memórias irreferenciáveis. Ao fundo, anunciada pela corrente de ar que atravessa o corredor, a cozinha subsiste. E nela, alguma da nossa identidade. O relógio, sem horas, adorna ainda a parede que os miúdos rabiscaram com cor e carvão. Zanguei-me nesse dia (só por fora). Os miúdos não ligaram nenhuma à rabugice da velha, nem à do velho, que entrara, logo de seguida, erguendo um escadote para acertar o relógio (nesse tempo em que o tempo, mais do que importante, era tudo). Era hora de almoço. O barulho circulatório de panelas, pratos e talheres fazia crescer sobre a mesa a certeza de um quotidiano que escapava ileso ao tédio dos dias. O aconchego das risadas quase não deixava espaço no estômago para a fome. Raramente estavamos tristes. Quando, porventura, o choro nos acontecia bebíamos as lágrimas potáveis um do outro. Vejo agora que, também nós, não passávamos de dois miúdos. Vejo agora como era ínclito tudo aquilo. Recuo.Torno ao pátio da casa. Ao momento. Aos cadeirões onde nos reclinamos sem pressa de apanhar as horas. São elas que agora nos apanham à socapa. Sem pudor. Violentamente. Para onde foi a casa cheia? Quando lhe terá secado o sangue sob a cal? Como ficámos dois velhos de um dia para o outro? Ainda ouço a voz da professora nos ditados da primária, o coração bate e escuto a cantilena atrapalhada da tabuada. Sempre gostei mais de letras; os números maçavam-me sobremaneira (há lá coisa mais chata que contabilizar). No entanto, contabilidade é agora tudo o que temos. Distraímo-nos por instantes, e pronto, temos a vida adverbiada, bilateral, administrativa. De tudo e de todos resumida. Com a velhice, deixamos entrar a tristeza. Pouco mais somos do que aparas encadernadas da nossa própria história. Por vezes, por teimosia de velha, ainda percorro o corredor e atravesso a corrente de ar até à cozinha, à nossa cozinha dos almoços domingueiros. À cozinha dos miúdos (travessia inglória a deste par de pernas trémulas). Já não há nada. Só algazarra dentro do estômago; e não são risos, nem apetite. Talvez vento. Desespero. Ou se calhar despedida. Vamos lentamente. Choramos, mas já não sabemos lamber as lágrimas um ao outro. Não podemos já bebê-las. São veneno evaporado à espera da distracção de dois velhos.

 

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Comentários

Os dois velhos

UAU! Tristíssimo, lindíssimo, cortante. Dá uma saudade do que nem vivi ainda... Que linda, a sua escrita!

Neide Heliodória

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