Até amanhã

 

Até amanhã

Portuguese

Era uma manhã comum, replicada. Debrucei-me sobre a janela e senti o vapor de mais um dia. Tu chegas. Perco-me com vagar subjectivo no labirinto das tuas mãos percorridas de promessas extintas. És real. Mordo a verdade para que não fique escrita; e dou por mim verbo ausente, ferida escarlate escondida sob a alvura da blusa que desapertas ao entardecer. Desejo súbito de madrugar no teu peito combalido. Divago pela tua memória na tentativa de descobrir em que ponto derivou a minha. E expludo. Dessa lembrança diarista resignada ao teu coração imbatível. O que recordo afinal? Reversão pacífica a varrer o leito onde estancamos os dias roubados ao calendário. Não temos tempo. Os minutos já iniciaram a contagem nas ruas privatizadas pelo egoísmo, sobras avulsas de uma infância sem teatro; e os vizinhos entretêm-se na nossa narrativa, fazendo dela o pão na mesa de todos os dias. Deixá-los. Acaba de amanhecer; há ainda lava a escorrer pelos contornos dos nossos corpos atordoados. E há tanto coração à espera de bater, de se redimir no solavanco de cada iminente surpresa. Não te escondas sob a pele que tudo revela; relevo primitivo de toda a vontade que nasce em parte incerta. Apetece-me decompor esta compostura cínica que se ergue sobranceira à nossa morada, terreno expropriado de chão e tecto, janela aberta para o teu céu, cenário semeado ao acaso nesta manhã sem futuro. Indefectível. Ária sem solista. É preciso insuflar de vida as horas instituídas, é preciso crescer com descarada demasia para que algo nos aconteça no resto dos dias que não contam. Há uma espécie de ironia magoada a insinuar-se por entre a chuva dos teus cabelos. E esse cerco apertado, suspiro ríspido a anunciar uma falsa despedida. Vejo-me, de novo, despida, as coxas a reclamarem o teu encaixe, a língua sem o paladar da palavra. E a valsa, a cama farta. Estado líquido a diluir a tua quase partida. Um homem nunca volta atrás se não for para ficar. Desfaleço do teu beijo adiado. Até amanhã.

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