Alinhavo

 

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Neide Heliodória

 

Nove meses se passaram após a trágica morte do filho. Os jornais chamam de “acidente”, palavra banal para a mãe do menino de 22 anos. Outro carro na contramão, motorista alcoolizado, terra sem lei.

O quarto do rapaz fora preservado naquele tempo que pareceu aos parentes, demasiado longo. O filho era metódico: cada coisa em seu devido lugar. Objetos poderiam ser encontrados até mesmo no corte da energia. 

Intrusa, naquele ambiente masculino e organizado, apenas a máquina de costura da mãe que não caberia em outro lugar.

Fazia-se presente um resto de relutância em doar aquelas roupas, aqueles objetos. Era como se ele fosse embora novamente, outra insuportável  despedida.

Num ritual incompreensível, mas nem tanto quanto à própria vida e seus cataclismos constantes, ela cheirou cada peça, apalpou tecidos, riu de alguns objetos, o filho guardava objetos impensáveis em sua simplicidade.

Caixas de papelão por ali deixadas pela tia do jovem morto, lhe pareceram maiores do que realmente eram: monstros a seqüestrar suas derradeiras lembranças. Mas é que lembranças fazem moradas em outro lugar, ela mesma questionou e partiu para o ataque: dobras, tesouras, fitas seladoras.  Quase num surto físico ela gastou poucas horas para embalar tudo e doar para um abrigo. Sentia que seu sentimento, nostalgia e saudade estariam abrigados num lugar secreto do miocárdio.

Algo da ordem do corte, do esvaziamento se apresentava então e há que se ter coragem para esbarrar no vácuo, no limbo, no doloroso intervalo de todas as coisas inexoravelmente marcadas pela perdição.

Quando o caminhão carregado de objetos deu a partida, ela se recostou e ali mesmo, no chão, sua terra naquele instante, verteu um oceano de lágrima, de dor e por ali adormeceu exaurida.

Acordou só dia seguinte tendo por companhia aquela máquina de costura, tão usada nos tempos difíceis de ajustes nas roupas e no orçamento.

Aquela senhora foi assaltada então, novamente, por um desejo simples e legítimo: quem sabe transformaria aquele quarto num Atelier de costura? Alinhavos, costuras, arremates: boa hora para estrear arranjos! Ela então preparou um café e foi tratar de comprar aviamentos, iria substituir e no lugar de aviar receita médica, providenciaria: fitas, tecidos, botões. Era hora de reparar, costurar, cerzir,  ajeitar tecidos, tecer outras palavras.

 

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