Isidro Parreira

 

Isidro Parreira

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A VISITA REAL

 

           

            Papá, papá...! – Chamou Rita, a medo, plantada á porta do quarto dos pais.

            Eugénio acordou com o inesperado chamamento da filha. Preocupado levantou a cabeça da almofada e abanou Isabel, sua esposa, para o ocorrido. Mal abriu os olhos, a luz forte do tecto, accionada nesse instante pela menina, quase o cegou. Por breves momentos ficou encandeado. Enquanto isso, Rita dirigiu-se ao leito, com um livro aberto junto ao peito.

            Por favor Ritinha...! Não são horas para isso...! – Desabafou Isabel, ensonada, numa tentativa de a demover.

            Eugénio, já refeito da cegueira, olhou o relógio despertador e balbuciou:

 – Tchi... são cinco e meia da manhã, filha... está frio.... Por favor, vai para a tua cama... 

A nenhum dos pedidos a diabinha cedeu.

– Sabes pai, - continuou ela, ignorando todas as adversidades que lhe foram colocadas - hoje fui ao oceanário...!

 – Ritinha o pai vai-se zangar contigo se não parares.... – Admoestou Eugénio.

  • Pai... escuta – interrompeu ela, fazendo uma expressão séria.

Eugénio vendo que não a dissuadia, cedeu.

– Vá, conta lá... mas rápido.

Recostou a cabeça, fechou os olhos e deitou o coração ao largo, para ouvir um chorrilho de invenções. Isabel virou as costas e tapou a cabeça para evitar a luz.

- Este, este e este, - apontando as fotografias de um livro de história - estiveram comigo hoje no Oceanário.

Apercebendo-se de que o pai estava desatento e de olhos fechados, puxou-lhe a cabeça.

- Ouviste? Perguntou ela.

Eugénio inspirou e expirou fortemente. O dedinho dela apontou novamente as figuras das personagens daquela página e repetiu:

 - Este, este e este, estiveram comigo há pouquinho no Oceanário.

- Rita não inventes histórias, e muito menos as estas horas. O pai está sem paciência e cheio de sono.

- Mas foi verdade...! Insistiu ela. Este aqui – continuou – até me deu uma moeda amarela muito bonita... Eu é que a perdi, porque o bolso das minhas calças está roto.

Eugénio, já desperto com a fértil imaginação da filha, achegou-a a si e disse-lhe:

- Tu sonhaste isso tudo, sabes porquê? – A cabecita da menina abanou em sinal de desconhecimento – É que o Infante D. Henrique, o Rei D. Manuel e Vasco da Gama, já morreram há muitas centenas de anos e, além disso, durante a noite não há visitas, porque o oceanário está fechado.

- Eu sei. Ripostou Rita. Mas eu fui com eles e ninguém nos viu, porque está um grande nevoeiro.

- Pronto, eu acredito. Vai para a cama.

Já liberto das fantasias da pequena, preparava-se para se aninhar de novo, quando olhou o relógio. O horário de se levantar não iria demorar a chegar. Eram seis horas, e não dava sequer para tentar adormecer. Por isso levantou-se para não correr risco de pegar no sono que nem pedra.

- Pensando bem, – disse para consigo – até vou mais cedo e rendo o Alberto. Haverá de ficar contente. Fardou-se, exemplarmente, e, como sempre, dando um beijo em cada uma das suas fadas, partiu.

Eugénio era segurança e desempenhava a sua função no Parque das Nações desde a altura em que a Expo98 abriu as portas. Na verdade, a enchente já havia passado, todavia, passados poucos meses do evento, as pessoas ainda ali acorriam em grande quantidade.

Pouco passava das sete da manhã quando chegou. Alberto ficou admirado com a sua chegada de quase uma hora antes. Sem mais, Eugénio perguntou como havia corrido a noite.

– Calma, - respondeu de imediato Alberto - mas tive a sensação de que alguém andou por aqui, no interior do oceanário, acrescentou. Por diversas vezes me desloquei lá, mas não era nada. Impressão minha. - Arrematou ele.

- Pronto, se não tens mais nada para me transmitir, podes ir...que eu fico. Alberto apertou a mão ao Eugénio e partiu.

A manhã estava fria e o nevoeiro cerrado dava-lhe uma calma inolvidável. Como sempre, deu uma volta por todo o exterior. As luzes do parque pouco iluminavam. Eram apenas pontos amarelados que brilhavam baçamente por aquele espaço tão vazio quanto silencioso. Junto ao rio, uma leve brisa sem força para afastar a densidade do nevoeiro, beliscava-lhe a cara. Nem a Ponte Vasco da Gama era visível.

De mãos nos bolsos passeou-se junto à margem do rio. Por meros momentos olhou em sua direcção. Apenas o som característico da água a bater mansamente se fazia ouvir.

Quando se preparava para virar costas e encetar nova ronda, ao longe, um mastro enorme suportando largas velas, ainda meio levantadas, despontou por entre a densa cortina branca. Espantado esfregou os olhos, e tornou a olhar, para se certificar que era apenas uma alucinação matinal. Na verdade, não era, constatou ele logo que os abriu. Continuava a ver, para seu espanto, em toda a sua plenitude uma caravela a fazer volteio por forma a que a proa ficasse virada a sul. Aquela visão era nítida de mais para ser imaginação sua. Estupefacto, encostou-se a um candeeiro ali perto até vê-la desaparecer.

Sem esforço, depressa ligou esta aparição à história da Ritinha e à desconfiança que Alberto havia tido aquando das rondas que tinha efectuado ao oceanário. Apesar de tudo, tentou encontrar uma explicação natural para o que havia visionado. Desistiu sem lhe ter surgido uma única ideia. Levantou a cabeça e tentou simplesmente dar o caso por encerrado. Puxou a gola do blusão para cima, colocou novamente as mãos nos bolsos e encetou a ronda em direcção ao oceanário. Mas, instintivamente, mal havia voltado as costas, numa esperança de tornar a ver a embarcação, olhou a retaguarda. E nada; apenas o nevoeiro, como uma parede branca e opaca, tapava o rio.

Ao desviar o olhar daquela invisível vastidão, viu algo a luzir no solo junto a um candeeiro. Voltou atrás e dirigiu-se àquele minúsculo ponto que reflectia a luz desbotada do globo. Baixou-se pensando ser uma carica de uma garrafa de cerveja ou refrigerante. Mas não era. Era uma moeda amarela. Apanhou- a. Com ela na mão, em vão tentou ler as gravações que nela estavam inscritas. O ambiente fosco não o permitiu. Colocou-a no bolso e olhou de seguida o relógio. Faltavam poucos minutos para as oito horas. Parte dos funcionários estavam quase a chegar. Por isso apressou-se e dirigiu-se para perto da entrada principal.

Aos poucos, o pessoal que ali trabalha começou a chegar. Por entre os cumprimentos matinais que maquinalmente dirigia, a visão que tivera não lhe saía um só instante da cabeça. Com a mão no bolso manuseava a moeda, ou lá o que fosse, fazendo-a girar viciosa e nervosamente por entre os dedos.

Não tardou muito para que, do interior do oceanário, soassem vozes alteradas. Era um dos chefes de pessoal que gritava com as empregadas da limpeza. Ao passar vistoria deu com a zona das visitas suja de lama. Eugénio espreitou de perto a acesa discussão. As coitadas estavam atónitas. Tinham a certeza de ter deixado tudo limpo no dia anterior, após o fecho, e isso teimavam com o superior.    

            A cabeça de Eugénio fervia e não parava de pensar. As fantasias da Ritinha, a sua visão, a desconfiança que o Alberto, seu colega, havia tido e, agora, para completar, a zonas das visitas suja de lama. Coisa esquisita esta última, também. Para si eram coincidências a mais.

            O nevoeiro aos poucos foi abrindo; o sol envergonhado e sem força foi aquecendo e iluminando o dia. E a vida do parque tomou a normalidade. As pessoas, apesar do dia acabrunhado, começaram a chegar, e Eugénio manteve-se ao serviço até ao final, sem, contudo, desligar da sua mente tudo o que se havia passado naquela manhã.

            Mal terminou o turno, apanhou o autocarro e foi até à baixa. Com a moeda fechada na mão, dirigiu-se direito à Rua do Ouro; encontrou a loja que já havia visto com moedas antigas na montra, e entrou; dirigiu-se ao velhote, por detrás do balcão, abriu a mão e, sem palavras, mostrou-lhe a pequena moeda amarela. O antiquário ficou pasmado. E, também sem palavras, retirou a moeda da palma da mão de Eugénio. Observou-a silenciosamente por alguns momentos e olhando por cima dos óculos, disse:

 - É belo ...  um cruzado em ouro, cunhado no reinado de D. Manuel. Nunca tinha visto um... verdadeiro; vale uma pipa de dinheiro...! Quer vender?

            Eugénio abanou a cabeça em sinal de negação e de imediato lhe foi devolvida a moeda. Obrigado, foi a única palavra que comerciante ouvira. Com ela na mão, desapareceu em direção a casa.

            Mal entrou em casa foi diretamente ao quarto da Ritinha.

Ela estava triste e silenciosa. Eugénio achegou-se lentamente com cara de mistério e, repentinamente, abriu a mão mesmo em frente do seu pequeno rosto. A pequenina, a ver a moeda, levou de imediato a mão à boquita em sinal de espanto.

 – Oh...! encontraste-a pai ...! – Abraçou-o de imediato.

            Isabel assomou entre portas. Eugénio cumprimentou-a, fazendo-lhe um adeus pequeno, ainda com a filha pendurada no seu pescoço.

  • Querida, devias coser o bolso das calças da Ritinha. Está roto...!

-  Hoje estou zangada, e ela e não merece. E tu também não lhe devias estar a dar esses mimos todos. Devias ter visto o chão do quarto dela todo cheio de lama...!

 Isabel, embora desconfiada com a atmosfera misteriosa que se sentia, retirou-se.

Os risinhos silenciosos de ambos não se fizeram esperar, selando a cumplicidade entre eles.

- Rita como é que eles souberam? Perguntou Eugénio num tom sério e baixinho, depois de olhar se a esposa já havia de facto abandonado a entrada do quarto.

- Ora isso soube-se no mundo todo...! - Respondeu ela também num tom sério e decidido, rapinando num impulso a moedinha da mão do pai.

  • É minha, disse ela arregalando-lhe os olhos.

 

 

 

 

 

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