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Arrastou a cadeira, após ter sido quase obrigado a entrar naquela sala de doutor de bata branca, deixando uma sala de visitas, com ar de prisioneiros envergonhados de si mesmos.

A pergunta devia ser a mesma de sempre: “Então, está aqui?”

- É verdade. Neste caso, nesta vida, que é só minha, o arrependimento não mata porque eu já morri há muito tempo. Quando o tempo era tempo de me deixar acreditar na possibilidade da felicidade. Quando o tempo era a própria alma que habitava dentro do meu corpo, numa ânsia louca de conter o mundo inteiro dentro de si mesmo. O infinito era eu e o finito estava dentro de mim.

O psiquiatra olhou atentamente para os olhos azuis do seu interlocutor como se procurasse sinais de demência…assim, à vista de uma visita de médico.

- Sabes, os que me conheciam pensavam que estava "tocado" pela loucura. Coisa perfeitamente humana! A pretensão da grandiosidade incomoda sempre aqueles que não têm ambição. E, na minha opinião, se não se tem ambição mais valia ter nascido um vegetal! As mãos, cavadas pela perfeição, moldavam mundos que se chocavam numa rota perdida de qualquer razão de ser...as estradas não têm, necessariamente, que levar a algum lado, pois não? E eu trabalhava com a imprevisibilidade como forma de matar o tédio da eternidade. É tão fácil criar algo à nossa imagem e semelhança quando estamos tão repletos de egocentrismo. Alimentava, constantemente, a fornalha da vaidade dentro do meu coração e orgulhava-me das obras feitas do pó.

- Fale-me do que criava…

- É fantástico criar um mundo cuja cegueira só o deixava enredar-se numa teia ilusoriamente criada por ele... quando sou eu a aranha que é admirada, seguida, obedecida e temida. As sombras dos deuses precisariam sempre de alguém que os disciplinasse. Nunca passariam de sombras porque se o fizessem seriam os novos deuses.

O psiquiatra anotava uns rabiscos quaisquer nas suas folhas no puro branco virginal e olhava constantemente para aquele sem-abrigo que estava ali à sua frente, com uma naturalidade estrondosa.

- Mas o meu mundo também se insubordinava. Ameaçava-me constantemente porque o sempre não existe com o mesmo significado do permanente na mente humana. E eu travava uma luta tremenda para que nada do que tinha construído se desmoronasse, como as areias do deserto que são os sonhos de outrora passados por entre os dedos do Tempo. Sempre tive o Tempo do meu lado, é verdade. E, como em todas as guerras, umas vezes ganhava, outras vezes perdia... mas o meu nome era sempre repetido. Basta que exista alguém que diga o nosso nome, nem que seja em vão, para que nunca morramos. Ser esquecido é que é morrer, quando a morte significa a ausência total de uma existência. Nesse sentido, o mundo era meu; era meu para sempre. O meu nome, sem ser o meu nome, era de todos. De quem o dissesse, para quem o procurasse.
Desenhei no mapa da vida uma linha que fosse a minha conduta: o amor. Tudo seria justificado em nome do amor. E se o amor era eu, logo tudo seria justificado em meu nome. Mas o amor não é uma personagem isenta de culpas nesta história. Pelo contrário, assume corpo quando tem ciúmes, quando sente vontade de mais, de exclusividade e perde a noção do que é ser incondicional. O tal amor incondicional. É uma lenda, entendes?

- Lendas?! Desde sempre que existiram pessoas a divulgar o amor como uma benesse…não acredita?

 - Sim...eu sei que existem aqueles ditos gurus que vocês seguem, em termos de ideal. Mas, quanto a mim, são os que se aproximam mais do tal vegetal de que te falei há pouco. Não está planeado para o ser humano ser perfeito. Nem tanto à terra nem tanto ao mar, não é assim que vocês dizem? E à medida que me aproximei de vocês e saía da tal linha do amor incondicional comecei, literalmente, a ganhar corpo, a entrar no mundo da matéria. Os vossos vícios, que eu tão bem alimentei, tomaram conta de mim. E um dia acordei (eu que nunca dormi!) a pensar: "É tão fácil ser humano!" Perdi-me para sempre para vós, no meio de vós, nem mais um Jesus Cristo poderia voltar atrás na história da criação. Nenhum testamento poderia explicar esta metamorfose porque o mundo de hoje não tem lugar para Bíblias Revisitadas...nem eu tenho mais poder para dar ao mundo outra luz divina. Sou mais um anjo caído que perdeu a noção do Bem e do Mal. Contudo, se pensar bem nas coisas... não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre. E não perdi tudo porque morri para nascer um de vós...

- Já é tarde...e ainda não me disse o seu nome. Tenho de o registar com algum nome. Vai ter de ficar aqui, na ala psiquiátrica, em observação durante uns dias, afinal quando o encontramos na rua estava em profundo estado de hipotermia, o que pode justificar essa sua pseudo - amnésia e visão deturpada das coisas. ( Meu Deus, mais um com a mania que também é Deus! O mundo foi mesmo dado aos loucos!) 

- É. Mas são esses loucos que te fazem trabalhar, já pensaste nisso?!
- Como? Não entendi... (será que pensei em voz alta? Tenho de ter cuidado comigo. À força de lidar com esta gente acabo como eles! ).
- Viver na ignorância da Verdade é mais confortável, não é? Eu percebo isso, afinal foi algo que desenvolvi em vós para não terem um mais fácil acesso até nós...os Deuses. Dei-vos a cegueira como limite da Verdade para nossa própria protecção.
- Ok. Por hoje é tudo. Vai descansar e amanhã continuamos, mais um bocadinho, a nossa conversa, está bem? Só precisava de um nome para poder registá-lo. Sabe como é as regras...o que tem de ser é.
- Sei como são as regras. Aprendem-se facilmente. Não sei quanto tempo vou estar aqui mas podes chamar-me...Elias, já que o meu verdadeiro nome te confunde. Amanhã é outro dia. E até eu acredito nisso. Pode ser que amanhã também acredites em mim. Olha, não te esqueças de dar os parabéns à tua esposa Madalena, quando ela chegar aí, daqui a pouco...

Depois deste ser alienado sair senti um estranho formigueiro dentro do meu coração. Nunca nenhum sem abrigo me "incomodou" tanto como este pobre diabo, com o seu olhar de pai eterno imobilizado no presente...e como é que ele sabia que eu sou casado e que, por acaso, a Madalena faz hoje anos? E saber o seu nome?! E que viria até aqui? Ela que nunca vem até ao hospital...tem uma fobia das "pessoas estranhas" como ela lhes chama, como se fossem uma doença materializada em carne, que a pudesse contagiar. Há outras formas de loucura, escondidas pelo que é tido como "civilizado", logo, aceitável. Por isso é que o acaso me atrai tanto nos dias de hoje. Acabam por ser uma espécie de imprevisibilidade que ajuda a matar o tédio...que parvoíce?! Mas que é que me deu para pensar assim?!

- Dr. José? A sua esposa acabou de chegar.
Posso mandar entrar?...

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