Um conto gótico

 

Um conto gótico

Portuguese

No seu mundo solitário e, por vezes, um pouco escuro, vivia uma pequena e doce menina que, devido às fortes e traiçoeiras investidas da vida, aprendeu a erguer enormes muros de solidão em seu redor, para que, nunca mais, voltasse a ser magoada.

O seu coração havia-se tornado tão negro que todos os seus pensamentos, mesmo os mais profundos da sua alma, se tinham tornado sufocantemente angustiantes.

A sua vida era, simplesmente, a morte. A sua essência, aquilo que a mantinha ligada a essa vida, era o sangue. Desde sempre aprendera a viver sozinha guiada pelo seu Anjo Negro.

Os cisnes negros não se assustaram com a sua presença quando ela deles se aproximou.

No reflexo que se espelha nas águas geladas do lago está estampada toda a tristeza da sua alma. Dos seus olhos brotam lágrimas que se fundem com as negras e geladas águas do lago, que as leva, ao sabor do vento, tentando que, elas, se afastem daquela pequena, doce e triste menina que não pára de chorar.

A dor que lhe vai na alma é tão grande que a consegue ver espelhada nas águas do lago quando olha para o seu reflexo.Os cisnes negros aproximam-se dela, olhando-a com olhos tristes como que a perguntar-se como pode uma pobre alma suportar tamanha dor, como pode um coração tão doce não parar de sangrar, como podem aqueles tristes olhos estar sempre afogados em lágrimas que teimam em não parar de saír.

Como pode aquela menina, com tanta dor dentro dela, encontrar forças e coragem para demonstrar um ténue sorriso quando encontra uma frágil rosa negra sem espinhos?

Ela colhe a sua rosa olhando para os céus, a noite começa a caír. Sente-se como aquela pequena rosa, ambas têm uma alma negra, mas frágil, que não tem como se proteger da dor que lhe provocam, assim como aquela rosa não se consegue proteger por não ter espinhos nela.Leva-a consigo. Irá protegê-la e cuidar dela para que nada nem ninguém a possa magoar.

Vira as costas ao lago com um último olhar triste para os cisnes negros que lhe devolvem o olhar e se perguntam quando virá também alguém “colher” aquela pobre menina para a proteger e não deixar que mais ninguém a magoe?

O crepúsculo abate-se sobre ela e o seu mundo, ao longe consegue ouvir o mar, revoltado, a embater nas rochas. O nevoeiro encobre a lua que tenta começar a brilhar.

Os pássaros da morte, negros como o céu, voam, assustados, em seu redor. O seu vestido negro arrasta-se pelo chão, os seus cabelos agitam-se com aquela brisa noturna. Percorre o seu caminho em busca do seu verdadeiro eu, em busca da sua vontade de viver, há muito perdida. Sente-se como uma velha árvore oca por dentro, sem vontade de viver, sem vontade de fazer nada.

Tenta agarrar-se a algo que lhe traga uma réstia de esperança para a sua existência. A água começa a caír do céu formando pequenos riachos debaixo dos seus pés que lhe lambem a pele e a bainha do vestido, algo em que ela nem repara. Está embrenhada demais nos seus pensamentos, obcecada com esta busca de uma única razão de viver.

Nada parece ser suficientemente forte para a manter presa a esta vida, tudo o que lhe parece certo tende a desaparecer no instante seguinte, tudo o que um dia a tornou forte, hoje a faz sentir fraca. Vai continuar nesta ânsia da sua busca... eternamente...

Perde-se na noite, está sozinha, rodeada pela escuridão, rodeada por sombras que se movem discretamente e de sussurros que mal se conseguem ouvir. O vento afasta-a... vagueia por enttre as trevas em busca do seu fatídico destino.

Não quer dormir esta noite, não aguenta mais uma noite sempre com os mesmos sonhos. Todas as noites sonha com o Anjo Negro  que vem para a levar com Ele. No entanto, sente sempre no ar uma frescura imprópria para quem aguarda a chegada daquele Anjo. Sente-se perdida, não sabe para onde ir, não sabe o que procurar. Não ouve o chamamento do seu Anjo, não sente o seu odor, não o avista no céu iluminado pela parca luz da lua. Sente que foi abandonada à sua sorte, que não mais ouvirá o seu negro chamamento, nem sentirá mais o seu odor a sangue e morte. Morrerá de saudades na sua solidão.

Quer gritar! Grita para a lua! A única que a ouve, a única que a compreende. Precisa de deixar sair tudo o que se acumulou dentro dela. Precisa de desabafar, de fazer sair aquela raiva cega que se acumula. Sente vontade de morrer, consegue jurar isso à lua! Vontade de deixar aquela vida sem sentido, sem significado, sem lógica. Aquela vida repleta de mentiras e de falsidade, de intrigas e preconceitos. Esta vida que parece que todos levam a brincar, que é tão fácil para toda a gente. Para todos, menos para ela!

Não se sente bem entre eles. Poucos são os que, na realidade, a conhecem, poucos são aqueles com quem consegue conversar. Poucos... quase nenhuns...

Sabe que habita na escuridão, que a cor do seu coração é negra, os seus pensamentos obscuros, a sua vida a morte. Sabe que vive pela morte, saciada pelo sangue, inebriada pela dor. Sabe que não se sente bem ali.

Todos os outros querem viver, querem a luz, procuram a alegria e a cor. Apenas ela quer morrer, quer a escuridão, procura a dor e a morte.

Procura um lugar onde se sinta bem, onde possa estar em paz consigo mesma, onde possa tentar ser tão feliz como todos os outros o aparentam ser.

Onde estará esse lugar? Ela sabe que ele existe, dentro do seu negro coração.

Os seus passos levaram-na a um nublado cemitério onde ela entrou acariciando a negra rosa que ainda levava nas mãos.

Pensamentos negros invadem a sua mente sem pedir autorização para tal. Pensamentos de morte, de tortura, de desespero, de pura malvadez. Apetece-lhe sangue, apetece-lhe o cheiro a morte, apetece-lhe o toque frio, gelado, daqueles que já partiram. Invade o cemitério em busca de algo que atenue esta sofreguidão, procura por algo em que possa tocar, remexer, sentir...

Uma sombra move-se ao fundo, desloca-se devagar para ver o que é.

Depara-se com uma criança, uma menina com um vestido branco e cabelo preto adornado com um laço vermelho. A menina encontra-se petrificada em frente de uma das inúmeras campas que formam aquele cemitério. Tem um aspeto sujo, descuidado, faminto. Com cautela, para não assustar aquela pequena criança, aproxima-se. Esta olha-a com os seus enormes e intensos olhos negros repletos de medo. A menina diz à criança para não se assustar, que não lhe fará mal e, ela, parece acalmar-se. Pergunta-lhe o que faz ela ali sozinha e, a criança, responde que não está sozinha, que está ali com a mãe. Pergunta-lhe se a mãe dela está dentro da campa junto da qual a criança se encontra e, esta, diz-lhe que sim, que a mãe foi para ali e que, desde então, tem estado sempre sozinha ali com a mãe.

A criança olha-a nos olhos e faz-lhe um pedido que ela não quer admitir a satisfação que lhe dá. Pede-lhe que a leve para junto da mãe, não quer mais estar ali sozinha, com medo. Ela diz-lhe que não a pode pôr junto da mãe mas, a criança, não desiste e agarra-se à menina a chorar e a implorar para, por favor, a ajudar e a levar para junto da mãe.

A menina olha para aquela pequena criança que tem os olhos repletos de lágrimas e de esperança e que grita e implora por ajuda.

A ânsia de sangue apodera-se fortemente dela. A criança implora num múrmurio.

Sem pensar mais, a menina retira a faca que sempre traz com ela presa na meia por debaixo do vestido e, num movimento rápido, corta a garganta à pequena criança.

O sangue escorre e ela consegue, finalmente, saciar a sua ânsia. O cheiro a morte é tão intenso que lhe tolda os sentidos. Finalmente sente-se bem, maravilhosa.

Olha para a criança e, esta, devolve-lhe o olhar repleto de eterna gratidão.

A menina sorri, mas apenas consegue pensar que não passa de nada mais do que um monstro por ter feito o que fez, mas, ao mesmo tempo, sabe que tornou uma criança feliz, será assim tão culpada?!

Os remorsos perseguem-na e afasta-se a correr daquele local deixando para trás a sua rosa negra sem espinhos, sabe que, agora, depois desta morte, está um passo mais próxima do seu fatídico destino.

Sabendo que iriam à sua procura, a menina escondeu-se dentro de si mesma e desapareceu com tudo o que era dela e nunca mais ninguém a viu. A chave que usou para se trancar depois da sua mudança, nada mais era do que ódio e mágoa reprimidos por uma eternidade. Não é fácil querer viver quando a própria vida lhe diz para desistir, não é fácil procurar incessantemente aquilo que não quer ser encontrado e ficar assim, tantas vezes, enrolada em si própria, caída no chão, coberta de sangue e mazelas, depois de a vida a espezinhar e torturar até não sentir absolutamente mais nada a não ser um frio tremendo que a percorre por dentro e a deixa a tremer.

Nesta sua nova vida, tão miserável como a anterior, encontrou, porém, uma outra alma. Uma alma tão negra como a dela, uma alma que apareceu e penetrou na sua e no seu coração sem pedir autorização para tal, e que deitou por terra todos aqueles muros de solidão que tanto lhe tinham custado a erguer.

O dono dessa alma mostrou-lhe que poderia ser a sua luz na escuridão e, ela, acreditou e desejou tanto poder sentir essa luz, poder sentir o amor negro de uma alma negra como a sua que, perdidamente, por ele se apaixonou. A sua alma saiu do seu corpo e passou a habitar descaradamente o dele. O que sentia era tão forte que as suas mágoas de vida desapareceram completamente. Ela esqueceu tudo aquilo que a havia magoado e entregou-se perdidamente  a esta alma negra que, aparentemente, gostava e cuidava dela. A menina achava ser, finalmente, importante para alguém.

O seu Anjo Negro ao vê-la assim tão feliz, tão protegida numa paz e tranquilidade enormes, sentiu a cruel facada do ciúme e abandonou-a ao seu destino, deixando que ela se entregasse completamente a esta outra alma.

Só que, a vida, é demasiado cruel. O destino magoa sem se importar com isso e, a menina, viu o seu mundo de salvação desabar aos seus pés.

A alma negra em quem ela pensava ter encontrado a salvação magoou-a mais do que alguém tinha feito até àquele dia. A dor que lhe foi provocada foi tão grande e intensa que a sua pobre alma caíu. Mas caíu tão fundo que jamais poderá voltar a erguer-se. O seu coração morreu na sua frente sem que ela tivesse sequer tempo de reagir para o tentar salvar. A sua mágoa é tão grande que, todas as noites, os seus olhos se afogam nas lágrimas que lhe escorrem pela face e lhe molham a almofada.

Ela não sabe como mais poderá continuar a sobreviver. Os seus muros de solidão recomeçaram a erguer-se lentamente.

O seu Anjo Negro aceitou o seu regresso e perdoou a sua escolha em troca da sua alma negra. A morte aguarda-a, ela sabe que é só uma questão de tempo. E, o tempo, não pára.

Ela não teme o seu destino. Sabe que, quando o Anjo Negro a vier buscar, quando a morte a quiser levar, que ela vai ser livre de toda  a dor que lhe atormenta a alma, vai ser livre de toda a mágoa que a consome de dia para dia, cada vez mais.

Quando não existir mais luz na sua vida, quando a saudade e o sentimento não passarem de meras miragens, quando o Anjo Negro vier reclamar a sua parte do acordo, ela sabe que não lhe irá resistir nem tentar escapar, porque será a sua fuga final de toda a dor.

A depressão consome-a e não lhe dá asas para ela tentar voar, a solidão voltou a ser a sua companheira, a escuridão a sua melhor amiga e, a morte, caminha ao seu lado como que uma irmã mais velha que olha por ela.

Ela sente-se cansada de chorar, completamente esgotada de todas as forças que usou para lutar por alguém que não a merecia. Sente-se desiludida com mais esta facada da vida. São tantas as setas de mágoa e dor cravadas no seu coração que ele não mais encontra forças para continuar a bater e a sobreviver.

O amor que nutria por aquela alma negra, o sentimento de carinho tão forte que possuía por ela, as saudades que sentia a cada segundo que não estavam juntos, a felicidade que a invadia sempre que os seus olhos tocavam os dele, o arrepio que lhe percorria a pele sempre que as suas mãos se tocavam, a falta que ele lhe fazia, o frio que ela sentia no peito nas noites em que não o podia ter ao seu lado... tudo isso vai passar a fazer parte de uma recordação distante quando a noite da sua libertação chegar. Ela só deseja que todo este enorme sentimento desapareça rapidamente. Ela só deseja que o seu Anjo Negro a venha buscar e a liberte de toda esta mágoa que a está a matar devagar e de forma torturante.

O seu Anjo Negro não esperará muito mais tempo, ele deseja loucamente a sua alma...

Ela aguarda ansiosamente o seu negro chamamento e sai para a noite em busca daquilo que procura, daquilo que lhe dará a paz de que necessita.

A noite, escura e sombria, esconde os seus segredos, segredos que são demasiado graves para poderem ser revelados.

A lua sangrenta e fria que tenta mostrar o seu brilho para ocultar todo o mal que se esconde na noite não lhe transmite segurança alguma, não lhe transmite paz.

Ela sabe que Eles se escondem por aí, por entre as sombras e a escuridão, onde se pensa que se está seguro, onde se pensa que se está a salvo.

A vida confunde-se com a morte, os instintos unem-se tornando-se um só: o instinto de sobrevivência. Apesar de o desejar fortemente, neste momento, o medo apodera-se dela, e ela sabe que está arrependida de o desejar tanto e sabe que terá de lhes fugir. Seja qual for o preço que tenha de pagar, sabe que não poderá simplesmente deixar-se apanhar facilmente, mas também sabe o que custa fugir ao próprio destino. Sabe que pode tentar esconder-se mas que Eles a encontrarão. Pode tentar fugir, mas nunca irá poderá ir muito longe. Não tem como escapar...

Junto ao rio de sangue que se forma no fim do bosque repleto de escuridão, Ele aguarda-a. Sabe que chegará a qualquer momento, porque lhe é destinada, porque é como ele e o seu chamamento é completamente irresistível para ela por mais que tente lutar contra ele. Abandonando todas as suas forças para lutar contra o destino, esquecendo todo o medo que dela se tinha apoderado e todas as hipóteses de fuga possíveis, ela segue o rasto de morte iluminada pela sangrenta luz da lua. Sabe que tem de chegar até Ele para poder ser libertada de toda a sua dor e mágoa e encontrar, finalmente, o seu caminho verdadeiro naquela vida de mentiras.

Aproxima-se Dele pela retaguarda, sem fazer barulho, mas Ele pressente a sua chegada. Ele consegue sentir o seu cheiro. Volta-se para ela com os seus olhos negros de escuridão. Abre as suas asas e uma leve e suave brisa chega até ela, trazendo com ela o Seu cheiro, o cheiro a morte, que o torna irresístivel.

Ela avança de encontro ao seu destino, pois, todo o medo que, outrora, se tinha apoderado dela se havia dissipado.

Ao longe os lobos uivam para a lua que tenta espreitar por detrás do nevoeiro.

Há muito que ela O aguarda, àquele Anjo de escuridão, há muito que sonha com a sua chegada todas as noites, há muito que lê o seu nome nos rios de sangue por onde vagueia, perdida, sem destino.

Os seus negros corações estão destinados a unirem-se, não tem como lutar contra o seu cruel destino. Sente que a chegada está para breve, tem de preparar a sua mente, manter a sua alma negra aberta para Ele, para que possa levá-la com Ele para um mundo onde viver faça sentido. O Seu chamamento é, cada vez, mais forte, sente o seu apelo como se fosse a coisa mais importante do mundo.

A lua sangrenta é testemunha do seu sacrifício, da sua entrega da alma a este Anjo Negro tão belo. Pega na faca, que outrora usara para tornar outra pobre alma feliz. Chegou o momento de dar significado à sua escura existência, de se encontrar nas sombras, jundo a Ele. Dos seus pulsos escorre um fio de sangue interminável e ela une-os e vira-os para a lua, para que ela testemunhe.

Sente-se tonta com a perda de sangue, mas lúcida o suficiente para conseguir ainda aproximar a lâmina da faca da sua pálida garganta e murmurar: "Nunca te procurei... mas tu encontraste-me... obrigado meu Anjo Negro".

Sem pensar mais, passa a lâmina pela garganta num movimento rápido e preciso, cai e fica deitada no chão, sufocada no seu próprio sangue. A sua lucidez está a esvair-se. Os seus sentidos estão a ser apagados.

Fecha os olhos esperando que a morte chegue e a embale com a sua doce mão e que o Seu Anjo a leve com ele nos Seus braços.

Ele olha para a lua e, depois, para ela. Abre as suas asas e toma o seu frágil corpo nos seus braços. Ela fecha os olhos.

O seu destino cumpriu-se... agora sim, está em paz.

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