Era Uma Vez Uma Rapariga

 

Era Uma Vez Uma Rapariga

Portuguese

Era uma vez uma rapariga. Nem a primeira, nem a última, mas uma em particular. Tinha uma beleza invejável e desejável. Um rosto suave, sempre com um sorriso com covinhas que encantavam qualquer um. Um cabelo longo e liso da cor do fogo que dançava ao vento, embalando a imaginação dos que a olhavam. Uns olhos... Quem não se perderia naqueles olhos da cor do mel? Quem não quereria provar aqueles doces olhos? Apenas uma. Só uma pessoa entre milhares.

Ela estava saturada. Farta daquilo tudo. Morta de cansaço. Não queria ser objecto de desejo, não queria ser o alvo de imaginações vivas de rapazes que nem conhecia. Já não queria ter que estar sempre bonita, sempre maquilhada, sempre “certinha”. Por onde quer que ela passasse, estavam dois pares de olhos a mirá-la. A analisá-la. A imaginá-la. E farta disso tudo, farta desses olhos que nunca convidou, um dia fugiu. Correu para onde as suas pernas a levaram. Mas para longe, sim, para longe deles, daquelas críticas, daquelas palavras, daquela escola, daquela cidade, daquelas pessoas, longe daquela humanidade, e, acima de tudo, longe dela própria. Queria escapar ao que de humano existia em si. Queria ser liberta de si mesma. Despir aquele corpo que não era ela, aquela cara, aquele sorriso com covinhas e, especialmente, aqueles olhos. Queria arrancar aqueles olhos de mel e deixá-los no chão para a humanidade venerar como objecto de desejo. 
 

Percorreu estradas, viu edifícios que não vale a pena mencionar e correu entre as pessoas que paravam para olhá-la. Com lágrimas nos olhos, corria, fugia, tentava viver realmente e não viver como vivia. Por vezes as lágrimas que lhe escorriam pela cara, caíam e iam parar às mãos grosseiras da multidão, que logo as lambia, como cães, para tentar provar um pouco do mel daqueles olhos. E ela correu ainda mais, chorou ainda mais e a multidão perseguia-a. Mais rápido, mais longe, mais viva. Vá! Estava quase longe da humana que era, longe dos olhos, dos cães e daquelas mentes. E parou. Um silêncio no ar. Uma brisa passou na sua cara, lembrando-a da sua infância, tão longe, tão inocente. Estava no cimo de um penhasco. À sua frente o mar. A liberdade a trinta metros apenas. Podia cheirá-la. Estava quase. Atrás dela a multidão. Os olhos. Os cães. Os carentes. Eles gritavam em desespero. Ela olhava-os e sorria com lágrimas de mel a escorrerem pelo rosto. Tão bonita como sempre. Ela disse, pela primeira vez na sua vida, “Adeus.” E eles perceberam. E correram, oh como corriam para tentar agarrá-la, para tentar salvá-la do mal que ela estava a fazer a si própria. Mas era tarde de mais. Ela virou-se para a liberdade que ficava a uns escassos metros abaixo dela e saltou. De braços abertos abraçou o nada. A multidão tentava cheirá-la, agarrá-la, lambê-la, mas nada conseguiu. E ela, naquela fatal queda sorriu. Como já não fazia há muito tempo. Sorriu e, encantada, entre rios de mel, voou. 

Apenas uma história. Apenas um era uma vez. Era uma vez uma rapariga.

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