Conto de uma tarde de Outono

 

Conto de uma tarde de Outono

Portuguese

Para lá da cidade chuvosa, industrial e cinzenta existe um pequeno oásis: escondido entre os prédios sociais, encaixotados, desenha-se um pequeno lago, rodeado por canas, que lembra um ambiente oriental e filtra através de si a luz do Sol, puxando-a em reflexos nas águas, dançando em dourados.

 Chegara-me aos ouvidos que estranhos estados de alma surgiam aos poucos que conheciam aquelas paragens. Levando apenas a guitarra sentei-me céptico, nas margens, porém ansioso. Quando já cansado de aguardar me perdia entre as cordas e o som, sem pensar em mais nada, o meu olhar subitamente parou numa flor, em que ainda não tinha reparado. Preparava-me para a colher quando um chilreio de um canário me despertou a atenção. Olhei para a ave e novamente me dirigi à flor, ouvindo o chilrear em crescendo, cada vez que me aproximava da minha intenção. Indignado voltei a olhar para a ave, como se esta me quisesse dizer algo, e do seu vestido de plumas amarelas apontasse, com o seu bico, ao meu redor. Quando olhei em volta as flores pareciam cercar-me. Como seria possível não ter visto algo tão óbvio ao sentar-me ali momentos antes? Voltei então a sentar-me e o canário pareceu descansar e acompanhar-me numa melodia como nunca tinha ouvido. E por instantes quase que senti que era possível apanhar um barco naquele lago e atravessar para outra margem, tão perto e tão longe. E as flores concentraram-se na forma de um sorriso, que se condensou numa silhueta que pegou na minha guitarra e acompanhou o canário com a sua voz, e tudo o que eu conseguia ver era os seus olhos, e o seu sorriso. Não dei pelo tempo passar, ainda que a luz tenha ficado mais ténue e as sombras crescido ao redor. Quando senti que era a despedida levantei-me para me ir embora, como se fosse a hora do último barco. Mas queria levar uma última recordação comigo, por isso voltei atrás, puxei uma das flores e arranquei-a da sua raiz. Ficou tudo estranhamente silencioso quando parti, com a certeza de voltar no dia seguinte. Voltei, procurei o espaço, dei voltas e voltas em tornos dos prédios, mas tudo o que via era cinzento e chão, não havia lago, não havia flores, nem canário, não havia barco nem sorriso, só restava eu, e aquela melodia dentro de mim. 

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